Prefácio
Card. Michael czerny SJ
Nos primeiros meses de 2020, o Papa Francisco refletiu com frequência sobre a pandemia do coronavírus, à medida que esta se apoderou da família humana. Foram aqui recolhidos oito textos significativos, falados e escritos pelo Pontífice entre 27 de março e 22 de abril. A quem e como falou ele? O que dis- se, e por quê?
Para além das suas ocasiões específi- cas, estes oito textos poderiam ser lidos em conjunto como uma única progressão do seu pensamento e como uma mensagem rica à humanidade. A coletânea tem dois objetivos. O primeiro é o de sugerir uma direção, cha- ves de leitura e diretrizes para a reconstrução de um mundo melhor que possa nascer desta crise da humanidade. O segundo objetivo é, em meio a tanto sofrimento e perplexidade, semear a esperança. O Papa fundamenta cla- ramente esta esperança na fé, porque «com Deus, a vida não morre jamais ».1
1 Mensagem Urbi et orbi Discurso durante o Mo- 3
Começamos com a mensagem Urbi et orbi, título de um importante tipo de discurso papal de longa tradição. Em 17 dias o Papa Francisco dirigiu-se solenemente e abençoou a cidade (Urbi) de Roma, da qual é Bispo, e o mundo inteiro (orbi): no dia 27 de março, uma ocasião sem precedentes, na extraordinária oração de adoração na Praça São Pedro; e no dia 12 de abril, como tradição, no domingo de Páscoa.
A bênção Urbi et orbi convida toda a humanidade a ouvir de forma tão inclusiva como o fez na Laudato si em 2015 – «Quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste pla- neta »2 – e a Querida Amazonia de fevereiro de 2020, que falou « ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade ».
Embora se aplique estritamente apenas a dois dos textos que estamos questionando, a Urbi et orbi, de alguma forma, caracteriza os oito textos desta coletânea sobre a crise da COVID-19. Eles falam das necessidades e do sofrimento das pessoas em várias situa- ções locais na maneira muito pessoal, sentida,
mento Extraordinário de Oração. “Por que sois tão medro- sos?”, Adro da Basílica de São Pedro, 27 de março de
2020.
2 Carta enc. Laudato si’, 25 de maio de 2015, 3.
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comprometida e esperançosa do Papa. São também mensagens verdadeiramente univer- sais, não apenas porque o vírus ameaça todos sem discriminações, mas sobretudo porque o mundo após a COVID-19 deve ser realizado por todos. Estes oito textos mostram a abor- dagem calorosa e inclusiva do Papa Francisco, que não reduz as pessoas a unidades a serem contadas, medidas e geridas, mas une todos em humanidade e espírito. E depois, com não menos calor e inclusão, o Papa desafia todos – desde os mais influentes aos mais humildes – a ousar fazer o bem, e fazer melhor. Nós po- demos! Temos de o fazer!
«Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus ».3 A Urbi et orbi se dirige aos chefes de Estado e de Governo, os que têm poder de decisão do mundo, «os que têm autoridade »,4 os privilegiados que pertencem a « uma pequena parte da humani- dade que avançou, enquanto a maioria ficou para trás».5 O Santo Padre coloca em discus-
3 Por que sois tão medrosos?, op. cit.
4 Catequese na Audiência Geral por ocasião do 50o
Dia da Terra. “Vencer os desafios globais”, 22 de abril de
2020.
5 Homilia no II Domingo da Páscoa (ou da Divina
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são e desafia «os que têm responsabilidade nos conflitos»6 e «os que detêm o poder eco- nômico ».7
«Encorajo todas as pessoas que detêm responsabilidades políticas a trabalhar ati- vamente em prol do bem comum»8 declara Francisco, e muitos países partilharam, de fato, informações, conhecimentos e recursos. Ao mesmo tempo a gratidão e o afeto do Papa vão «para quantos trabalham assiduamen- te para garantir os serviços essenciais neces- sários à convivência civil, para as forças da ordem e os militares que em muitos países contribuíram para aliviar as dificuldades e tribulações da população ».9
Nesta coletânea única, o Papa Francisco escuta e olha também para os muitos que nor- malmente são mantidos em silêncio e invisí- veis. Na Páscoa escreveu aos movimentos ou às organizações de base da economia informal ou popular. « A nossa civilização [...] precisa
Misericórdia). “O egoísmo: um vírus ainda pior”, 19 de abril de 2020.
6 Mensagem Urbi et orbi – Páscoa 2020, “Como uma nova chama”, 12 de abril de 2020.
7 Carta aos Movimentos Populares. “A um exército invisível”, 12 de abril de 2020.
8 Como uma nova chama, op. cit. 9 Ibid.
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de uma mudança, de um balanço, de uma re- generação. Vós sois construtores indispensá- veis desta mudança que já não pode ser adia- da ».10 E com uma breve mensagem, « quero agora saudar o mundo dos jornais de rua es- pecialmente os seus vendedores na sua maio- ria sem abrigo, severamente marginalizados, desempregados».11 Esta é provavelmente a primeira vez que estas pessoas são tidas em conta e ainda mais saudadas com respeito; e continua: «Nestes dias olhar para os mais pobres pode ajudar-nos a todos a tomar cons- ciência do que realmente nos está acontecen- do e da nossa verdadeira condição ».12
Dirigindo-se a cada um e a todos dire- tamente, não “do alto” ou em abstrato, Papa Francisco estende a mão com afeto paternal e compaixão para fazer seu o sofrimento e o sacrifício de tanta gente: « Que Senhor da vida acolha os defuntos no seu reino e conceda con- forto e esperança aos que ainda sofrem, espe- cialmente os idosos e os que estão sós. Que ele nunca retire o seu consolo e a sua ajuda àqueles que são especialmente vulneráveis,
10 A um exército invisível, op. cit.
11 Carta ao mundo dos jornais de rua, 21 de abril
de 2020.
12 Ibid.
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como as pessoas que trabalham em clínicas, ou vivem em casernas e prisões».13 E a lista continua: «médicos, enfermeiros e enfermei- ras, fornecedores, limpadores, cuidadores, transportadores, forças de ordem, voluntá- rios, sacerdotes, religiosos e religiosas»,14 as- sim como « pais, mães, avós e professores que mostram às nossas crianças, com pequenos gestos diários, como enfrentar e atravessar uma crise, ajustando suas rotinas, levantando o olhar e promovendo a oração».15 E solida- riza: « Quão difícil é ficar em casa para quem mora em uma pequena casa precária ou para quem de fato não tem teto. Quão difícil é para os migrantes, as pessoas privadas de liberda- de ou para aqueles que realizam um processo de cura para dependências».16 E «penso nas pessoas, especialmente mulheres, que mul- tiplicam o pão nos refeitórios comunitários, cozinhando com duas cebolas e um pacote de arroz um delicioso guisado para centenas de crianças, penso nos doentes, penso nos idosos. [...] nos camponeses e os agricultores familia- res, que continuam a trabalhar para produzir
13 Como uma nova chama, op. cit.
14 Por que sois tão medrosos?, op. cit.
15 Ibid.
16 A um exército invisível, op. cit.
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alimentos saudáveis, sem destruir a natureza, sem monopolizá-los ou especular com a ne- cessidade do povo ».17
Então, o que diz o Papa e por quê? No máximo, como uma «alternativa, resta apenas o egoísmo dos interesses particulares e a tenta- ção dum regresso ao passado, com o risco de colocar a dura prova a convivência pacífica e o progresso das próximas gerações»;18 e com isso vem o « perigo de esquecermos quem fi- cou para trás. O risco é que nos atinja um ví- rus ainda pior: o da indiferença egoísta ».19
« O que está acontecendo nos abala den- tro »20 e todos se reconheçam « como parte duma única família e se apoiem mutuamen- te ».21 « É tempo de remover as desigualdades, sanar a injustiça a que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira! ».22
Chegou o momento de nos prepararmos para uma mudança fundamental no mundo após COVID. Em uma nota escrita a mão a um juiz argentino, o Papa enfatiza: « É importante
17 Ibid.
18 Como uma nova chama, op. cit.
19 O egoísmo: um vírus ainda pior, op. cit.
20 Ibid.
21 Como uma nova chama, op. cit.
22 O egoísmo: um vírus ainda pior, op. cit.
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nos prepararmos para o depois ».23 E numa re- cente entrevista, não presente nesta coletânea, registrando suas respostas à um jornalista bri- tânico, afirma que « as consequências já come- çaram a se revelar como trágicas e dolorosas, é por isso devemos pensar nisso agora ».24
Como membros de uma única família humana e habitantes da única casa comum, um egoísmo perigoso nos infecta muito mais do que a COVID-19. « Falhamos na nossa res- ponsabilidade de guardiães e administrado- res da Terra. Basta olhar a realidade com since- ridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. Poluímo-la, saqueámo- -la, colocando em perigo a nossa própria vida [...]. Não há futuro para nós se destruirmos o meio ambiente que nos sustenta».25 Agora, diante da pandemia, temos vivido ampla e vi- vidamente a nossa interligação na vulnerabi- lidade. Grande parte da humanidade respon- deu a esta vulnerabilidade com determinação
23 Carta ao Dr. Roberto Andrés Gallardo. “A prepa- ração para o futuro é importante”, 30 de março de 2020.
24 Cf. auSten ivereigh, “A Time of Great Uncer- tainty”. An interview with Pope Francis [“Um período de grande incerteza”. Entrevista com o Papa Francisco], 8 de abril de 2020.
25 Vencer os desafios globais, op. cit. 10
e solidariedade. Provamos que o podemos fazer, que podemos mudar, e cabe-nos ago- ra traduzir estas características em uma con- versão permanente com determinação e soli- dariedade para fazer face às nossas ameaças maiores e a mais longo prazo.
Chegou também o momento de refletir sobre as atividades econômicas e sobre o tra- balho. Voltar apenas ao que se fazia antes da pandemia pode parecer a escolha mais óbvia e prática, mas por que não mudar para algo melhor? Por que reinvestir nos combustíveis fósseis, na monocultura e na destruição das florestas tropicais quando sabemos que agra- vam a nossa crise ambiental? O Papa está preocupado «com a hipocrisia de certos per- sonagens políticos que dizem que querem enfrentar a crise [...] mas enquanto falam fa- bricam armas».26 Certamente, precisamos de “armas” de um tipo diferente para combater as doenças e aliviar os sofrimentos, a come- çar por todo o equipamento necessário para clínicas e hospitais de todo o mundo. Pense- mos corajosamente fora dos padrões! Depois do que já passamos este ano, não devemos ter medo de nos aventurarmos por novos cami- nhos e de propor soluções inovadoras.
26 Cf. ivereigh, A Time of Great Uncertainty, op. cit. 11
O trabalho de assistência à saúde re- quer certamente reconhecimento, apoio e inovação. A pandemia demonstrou o quanto os cuidados de saúde sejam fundamentais e estratégicos. No entanto em muitos países é um setor ignorado: os salários são baixos, os hospitais têm poucos funcionários, os turnos são pesados, faltam contratos formais e be- nefícios. Muitos profissionais da saúde são informais: «Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular, não têm um salário estável para resistir a esse mo- mento».27 Muitos são imigrantes. Por que os trabalhadores de outros setores, que dão um contributo social muito menos importante, ganham muito mais do que os profissionais da saúde? Além disso, a valorização dos pro- fissionais da saúde melhoraria significativa- mente a situação das mulheres, uma vez que elas são numericamente predominantes nes- te setor: mais uma razão para que o trabalho dos profissionais da saúde não seja marginal. Mostremos a mesma agilidade operacional demonstrada no sucesso do bloqueio do ví- rus, reabilitando e melhorando todo o setor dos profissionais da saúde.
27 A um exército invisível, op. cit. 12
Esta lógica deve se estender a todo o se- tor informal. «Muitos de vocês vivem o dia a dia sem nenhum tipo de garantias legais que os protejam».28 Estes são os trabalhado- res com menos proteção durante a quarente- na, mesmo se muitos deles sejam tão essen- ciais quanto os que têm um emprego estável. «Vendedores ambulantes, os recicladores, os feirantes, os pequenos agricultores, os pedrei- ros, as costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado [...] as quarentenas são insuportáveis».29 O Papa pede-nos que mos- tremos coragem na inovação, experimentan- do novas soluções e enveredando por novos caminhos.
Olhando para o futuro, vamos ler os sinais que a COVID-19 exibiu claramente. Não esqueçamos o quanto a perda do con- tato humano durante este tempo nos tenha empobrecido profundamente, quando fomos separados dos vizinhos, dos amigos, colegas de trabalho e especialmente da família, in- cluindo a crueldade total de não podermos acompanhar os moribundos nos seus últimos momentos de vida e depois chorá-los devi- damente. Não consideremos óbvio o fato de
28 Ibid. 29 Ibid.
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podermos retomar a convivência no futuro, mas redescubramo-la e encontremos formas de fortalecer agora esta possibilidade.
Desafiar e mudar as indústrias atuais, reconhecer o trabalho informal, e reforçar o trabalho da assistência de saúde são a ordem do dia na agenda política. «Espero que os governos entendam que os paradigmas tec- nocráticos (sejam centrados no Estado, sejam centrados no mercado) não são suficientes para enfrentar esta crise e nem os outros pro- blemas importantes da humanidade. Agora, mais do que nunca, são as pessoas, as comu- nidades, os povos que devem estar no centro, unidos para curar, cuidar, compartilhar ».30
Neste momento já compreendemos que todos estão envolvidos e implicados por cau- sa da COVID-19: desigualdade, aquecimento global e má gestão ameaçam todos. Devemos também compreender que devem ser intro- duzidas mudanças nos paradigmas e siste- mas que colocam o mundo inteiro em perigo. A nossa vida após a pandemia não pode ser uma réplica do que se passou antes, indepen- dentemente de quem costumava se beneficiar de forma desproporcionada. «E usemos de
30 Ibid. 14
misericórdia para com os mais frágeis: só as- sim reconstruiremos um mundo novo ».31
A COVID-19 permitiu-nos por à prova o egoísmo e a concorrência, e a resposta está em: se continuarmos a aceitar e a exigir uma concorrência implacável entre interesses, em- presariais e nacionais onde os perdedores são destruídos, então, no final, também os vence- dores acabarão por perder juntamente com os restantes, porque este modelo é insustentável em todas as escalas: desde o vírus microscó- pico às correntes oceânicas, à atmosfera mun- dial e às reservas de água doce. Uma nova era de solidariedade teria todos os seres humanos no mesmo plano de dignidade, cada um assu- mindo a sua responsabilidade e contribuindo para que todos, a si próprio e aos outros e às gerações futuras, pudessem prosperar.
Junto com a visão, empenho e ação, o Papa Francisco demonstrou como a oração é fundamental para reorientar o nosso olhar na esperança, especialmente quando a espe- rança se torna tênue e luta para sobreviver. « Quantas pessoas rezam, se imolam e interce- dem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras ».32
31 O egoísmo: um vírus ainda pior, op. cit.
32 Por que sois tão medrosos?, op cit.
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Enquanto conduzia o mundo em adoração no dia 27 de março, o Santo Padre ensinava que rezar significa:
• escutar, para nos deixarmos perturbar pelo que estamos vivendo, para en- frentar o vento e o silêncio, a escuri- dão e a chuva, para deixarmos que as sirenes das ambulâncias nos pertur- bem;
• reconhecer que não somos autossu- ficientes e, portanto, confiar-nos em Deus;
• contemplar o Corpo de Cristo para ser permeados pela sua maneira de fazer, dialogar com Ele para acolher, acompanhar e apoiar como Ele fez;
• aprender de Jesus a carregar a cruz e, juntamente com Ele, a assumir o sofri- mento de muitos;
• imitá-lo na nossa fragilidade para que, através da nossa fraqueza, a sal- vação entre no mundo;
• olhar para Maria, “Saúde do Povo e Estrela do Mar Tempestuoso e pedir- -lhe que nos ensine a dizer Sim todos os dias e estar disponível, de forma concreta e generosa.
A oração torna-se hoje o caminho para descobrir como se tornar discípulos e missio-
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nários, encarnando o amor incondicional em circunstâncias muito diversas para cada ser humano e cada criatura. Este caminho pode conduzir-nos a uma visão diferente do mun- do, das suas contradições e das suas possibi- lidades, pode ensinar-nos dia após dia como converter as nossas relações, os nossos estilos de vida, as nossas expectativas e as nossas po- líticas para o desenvolvimento humano inte- gral e para a plenitude da vida.
Portanto, a escuta, a contemplação, a oração são parte integrante da luta contra as desigualdades e as exclusões e a favor de al- ternativas que sustentem a vida.
Papa Francisco diz a cada leitor desta coletânea, a cada comunidade e sociedade, Urbi et orbi: «Rezo por vós, rezo convosco. Quero pedir ao nosso Deus Pai que os aben- çoe, encha vocês com o seu amor e os defenda ao longo do caminho, dando-lhes a força que nos mantém vivos e não desaponta: a espe- rança ».33
33 A um exército invisível, op. cit.
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Porque sois tão medrosos?
«Ao34 entardecer...» (Mc 4,35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nos- sas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que pa- ralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À seme- lhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inespera- da e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e neces- sários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados « vamos perecer » (cf. 4,38), assim também nós nos apercebemos de que não podemos conti- nuar estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.
34 Mensagem Urbi et orbi durante o Momento Ex- traordinário de oração em tempo de epidemia, Adro da Ba- sílica de São Pedro, 27 de março de 2020.
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Rever-nos nesta narrativa, é fácil; difícil é entender o comportamento de Jesus. En- quanto os discípulos naturalmente se sentem alarmados e desesperados, Ele está na popa, na parte do barco que se afunda primeiro... E que faz? Não obstante a tempestade, dor- me tranquilamente, confiado no Pai (é a única vez no Evangelho que vemos Jesus a dormir). Acordam-No; mas, depois de acalmar o vento e as águas, Ele volta-Se para os discípulos em tom de censura: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? » (4,40).
Procuremos compreender. Em que con- siste esta falta de fé dos discípulos, que se contrapõe à confiança de Jesus? Não é que deixaram de crer N’Ele, pois invocam-No; mas vejamos como O invocam: « Mestre, não Te importas que pereçamos?» (4,38) Não Te importas: pensam que Jesus Se tenha desinte- ressado deles, não cuide deles. Entre nós, nas nossas famílias, uma das coisas que mais dói é ouvirmos dizer: « Não te importas de mim ». É uma frase que fere e desencadeia turbulên- cia no coração. Terá abalado também Jesus, pois não há ninguém que se importe mais de nós do que Ele. De facto, uma vez invocado, salva os seus discípulos desalentados.
A tempestade desmascara a nossa vulne- rabilidade e deixa a descoberto as falsas e su- pérfluas seguranças com que construímos os
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nossos programas, os nossos projetos, os nos- sos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a des- coberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente « salvadores », incapa- zes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos as- sim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.
Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria ima- gem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aque- la (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.
« Porque sois tão medrosos? Ainda não ten- des fé?» Nesta tarde, Senhor, a tua Palavra atinge e toca-nos a todos. Neste nosso mun- do, que Tu amas mais do que nós, avançamos a toda velocidade, sentindo-nos em tudo for- tes e capazes. Na nossa avidez de lucro, dei- xamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito
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dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: «Acorda, Se- nhor! »
«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Senhor, lanças-nos um apelo, um apelo à fé. Esta não é tanto acreditar que Tu existes, como sobretudo vir a Ti e fiar-se de Ti. Nesta Quaresma, ressoa o teu apelo urgente: « Convertei-vos... ». « Convertei-Vos a Mim de todo o vosso coração » (Jl 2,12). Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tem- po de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de via- gem exemplares, que, no medo, reagiram ofe- recendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do úl-
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timo espetáculo, mas que hoje estão, sem dú- vida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e en- fermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportado- res, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozi- nho. Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos po- vos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: « Que todos sejam um só » (Jo 17,21). Quantas pessoas dia a dia exerci- tam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas correspon- sabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e interce- dem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras.
«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» O início da fé é reconhecer-se ne- cessitado de salvação. Não somos autossufi- cientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das es- trelas. Convidemos Jesus a subir para o barco
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da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos me- dos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida não morre jamais.
O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas ho- ras em que tudo parece naufragar. O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor. No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas, ouça- mos mais uma vez o anúncio que nos salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. Não apaguemos a mecha que ainda fumega (cf. Is 42,3), que
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nunca adoece, e deixemos que reacenda a es- perança.
Abraçar a sua cruz significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momen- to a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espí- rito é capaz de suscitar. Significa encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solida- riedade. Na sua cruz, fomos salvos para aco- lher a esperança e deixar que seja ela a forta- lecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liber- ta do medo e dá esperança.
« Porque sois tão medrosos? Ainda não ten- des fé? » Queridos irmãos e irmãs, deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nes- ta tarde de vos confiar a todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela do mar em tempestade. Desta co- lunata que abraça Roma e o mundo desça so- bre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e
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sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14,27). E nós, juntamente com Pedro, « confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós » (cf. 1 Ped 5,7).
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A PrePArAção PArA o dePois é imPortAnte
Caro35 irmão,
obrigado pela sua mensagem. Todos nós estamos preocupados com a progressão geo- métrica da pandemia. Estou edificado pela reação de muitas pessoas, médicos, enfermei- ros, voluntários, religiosos, sacerdotes, arris- cando suas vidas para curar e defender pes- soas saudáveis do contágio. Alguns governos têm tomado medidas exemplares com prio- ridades claras para defender a população. É verdade que essas medidas são pesadas para aqueles que se veem obrigados a observá-las, mas é sempre para o bem comum e, em geral, a maioria das pessoas as aceita e age com ati- tude positiva.
Governos que enfrentam a crise desta forma mostram a prioridade de suas deci- sões: as pessoas primeiro. E isso é importante porque todos sabemos que defender o povo significa um colapso econômico. Seria triste se eles escolhessem o contrário, o que levaria à morte de muitas pessoas, uma espécie de ge- nocídio viral.
35 Carta a Roberto Andrés Gallardo, 30 de março de 2020.
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Na sexta-feira tivemos uma reunião com o Dicastério para o Serviço do Desenvolvi- mento Humano Integral para refletir sobre o hoje e o amanhã. A preparação para o depois é importante. Já podemos ver algumas conse- quências que precisam ser enfrentadas: fome, especialmente para pessoas sem emprego permanente (trabalho precário, etc.), violên- cia, o aparecimento de usurários (que são a verdadeira chaga do amanhã social, crimino- sos desumanos), etc.
Sobre o futuro econômico é interessan- te a visão da economista Mariana Mazzucato, professora do University College London (O valor de tudo. Fazer e tirar na economia global, Te- mas e Debates, 2019). Quem o produz e quem o tira na economia global”, Laterza 2018). Eu acho que ajuda pensar no futuro.
Queridas saudações a tua mãe, por fa- vor não te esqueças de rezar por mim; eu faço isso por ti. Que o Senhor te abençoe e que a Santíssima Virgem te proteja.
Fraternalmente
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como umA novA chAmA
Queridos36 irmãos e irmãs, feliz Páscoa!
Hoje ecoa em todo o mundo o anúncio da Igreja: « Jesus Cristo ressuscitou »; « ressus- citou verdadeiramente »!
Como uma nova chama, se acendeu esta Boa Nova na noite: a noite dum mundo já a braços com desafios epocais e agora oprimi- do pela pandemia, que coloca a dura prova a nossa grande família humana. Nesta noite, ressoou a voz da Igreja: « Cristo, minha espe- rança, ressuscitou! » (Sequência da Páscoa).
É um « contágio » diferente, que se trans- mite de coração a coração, porque todo o cora- ção humano aguarda esta Boa Nova. É o con- tágio da esperança: « Cristo, minha esperança, ressuscitou! » Não se trata duma fórmula má- gica, que faça desvanecerem-se os problemas. Não! A ressurreição de Cristo não é isso. Mas é a vitória do amor sobre a raiz do mal, uma vitória que não « salta » por cima do sofrimen- to e da morte, mas atravessa-os abrindo uma estrada no abismo, transformando o mal em bem: marca exclusiva do poder de Deus.
36 Mensagem Urbi et orbi – Páscoa 2020, Basílica Vaticana, 12 de abril de 2020.
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O Ressuscitado é o Crucificado; e não outra pessoa. Indeléveis no seu corpo glo- rioso, traz as chagas: feridas que se tornaram frestas de esperança. Para Ele, voltamos o nosso olhar para que sare as feridas da huma- nidade atribulada.
Hoje penso sobretudo em quantos fo- ram atingidos diretamente pelo coronavírus: os doentes, os que morreram e os familiares que choram a partida dos seus queridos e por vezes sem conseguir sequer dizer-lhes o últi- mo adeus.
O Senhor da vida acolha junto de Si no seu Reino os falecidos e dê conforto e espe- rança a quem ainda está na prova, especial- mente aos idosos e às pessoas sem ninguém. Não deixe faltar a sua consolação e os auxílios necessários a quem se encontra em condições de particular vulnerabilidade, como aqueles que trabalham nas casas de cura ou vivem nos quartéis e nas prisões.
Para muitos, é uma Páscoa de solidão, vivida entre lutos e tantos incómodos que a pandemia está a causar, desde os sofrimentos físicos até aos problemas económicos.
Esta epidemia não nos privou apenas dos afetos, mas também da possibilidade de recorrer pessoalmente à consolação que brota dos Sacramentos, especialmente da Eucaris-
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tia e da Reconciliação. Em muitos países, não foi possível aceder a eles, mas o Senhor não nos deixou sozinhos! Permanecendo unidos na oração, temos a certeza de que Ele colocou sobre nós a sua mão (cf. Sal 139/138, 5), repe- tindo a cada um com veemência: Não tenhas medo! « Ressuscitei e estou contigo para sem- pre » (cf. Missal Romano).
Jesus, nossa Páscoa, dê força e esperan- ça aos médicos e enfermeiros, que por todo o lado oferecem um testemunho de solicitude e amor ao próximo até ao extremo das forças e, por vezes, até ao sacrifício da própria saúde. Para eles, bem como para quantos trabalham assiduamente para garantir os serviços essen- ciais necessários à convivência civil, para as forças da ordem e os militares que em muitos países contribuíram para aliviar as dificulda- des e tribulações da população, vai a nossa saudação afetuosa juntamente com a nossa gratidão.
Nestas semanas, alterou-se improvi- samente a vida de milhões de pessoas. Para muitos, ficar em casa foi uma ocasião para refletir, parar os ritmos frenéticos da vida, permanecer com os próprios familiares e des- frutar da sua companhia. Mas, para muitos outros, é também um momento de preocupa- ção pelo futuro que se apresenta incerto, pelo
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emprego que se corre o risco de perder e pe- las outras consequências que acarreta a atual crise. Encorajo todas as pessoas que detêm responsabilidades políticas a trabalhar ativa- mente em prol do bem comum dos cidadãos, fornecendo os meios e instrumentos neces- sários para permitir a todos que levem uma vida digna e favorecer – logo que as circuns- tâncias o permitam – a retoma das atividades diárias habituais.
Este não é tempo para a indiferença, por- que o mundo inteiro está a sofrer e deve sen- tir-se unido ao enfrentar a pandemia. Jesus ressuscitado dê esperança a todos os pobres, a quantos vivem nas periferias, aos refugia- dos e aos sem abrigo. Não sejam deixados so- zinhos estes irmãos e irmãs mais frágeis, que povoam as cidades e as periferias de todas as partes do mundo. Não lhes deixemos faltar os bens de primeira necessidade, mais difíceis de encontrar agora que muitas atividades es- tão encerradas, bem como os medicamentos e sobretudo a possibilidade duma assistên- cia sanitária adequada. Em consideração das presentes circunstâncias, sejam abrandadas também as sanções internacionais que impe- dem os países visados de proporcionar apoio adequado aos seus cidadãos e seja permitido a todos os Estados acudir às maiores necessi-
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dades do momento atual, reduzindo – se não mesmo perdoando – a dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.
Este não é tempo para egoísmos, pois o desafio que enfrentamos nos une a todos e não faz distinção de pessoas. Dentre as mui- tas áreas do mundo afetadas pelo coronaví- rus, penso de modo especial na Europa. De- pois da II Guerra Mundial, este Continente pôde ressurgir graças a um espírito concreto de solidariedade, que lhe permitiu superar as rivalidades do passado. É muito urgente, so- bretudo nas circunstâncias presentes, que tais rivalidades não retomem vigor; antes, pelo contrário, todos se reconheçam como parte duma única família e se apoiem mutuamente. Hoje, à sua frente, a União Europeia tem um desafio epocal, de que dependerá não apenas o futuro dela, mas também o do mundo intei- ro. Não se perca esta ocasião para dar nova prova de solidariedade, inclusive recorrendo a soluções inovadoras. Como alternativa, res- ta apenas o egoísmo dos interesses particula- res e a tentação dum regresso ao passado, com o risco de colocar a dura prova a convivência pacífica e o progresso das próximas gerações.
Este não é tempo para divisões. Cristo, nossa paz, ilumine a quantos têm responsa- bilidades nos conflitos, para que tenham a
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coragem de aderir ao apelo a um cessar-fo- go global e imediato em todos os cantos do mundo. Este não é tempo para continuar a fa- bricar e comercializar armas, gastando somas enormes que deveriam ser usadas para cuidar das pessoas e salvar vidas. Ao contrário, seja o tempo em que finalmente se ponha termo à longa guerra que ensanguentou a amada Sí- ria, ao conflito no Iémen e às tensões no Ira- que, bem como no Líbano. Seja este o tempo em que retomem o diálogo israelitas e pales- tinenses para encontrar uma solução estável e duradoura que permita a ambos os povos viverem em paz. Cessem os sofrimentos da população que vive nas regiões orientais da Ucrânia. Ponha-se termo aos ataques terroris- tas perpetrados contra tantas pessoas inocen- tes em vários países da África.
Este não é tempo para o esquecimento. A crise que estamos a enfrentar não nos faça esquecer muitas outras emergências que acar- retam sofrimentos a tantas pessoas. Que o Se- nhor da vida Se mostre próximo das popula- ções da Ásia e da África que estão a atravessar graves crises humanitárias, como na Região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Acalente o coração das inúmeras pessoas re- fugiadas e deslocadas por causa de guerras, seca e carestia. Proteja os inúmeros migran-
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tes e refugiados, muitos deles crianças, que vivem em condições insuportáveis, especial- mente na Líbia e na fronteira entre a Grécia e a Turquia. E não quero esquecer a ilha de Lesbos. Faça com que na Venezuela se chegue a soluções concretas e imediatas, destinadas a permitir a ajuda internacional à população que sofre por causa da grave conjuntura polí- tica, socioeconómica e sanitária.
Queridos irmãos e irmãs,
Verdadeiramente palavras como in- diferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo. Mais, queremos bani-las de todos os tempos! Aquelas parecem prevalecer quando em nós vencem o medo e a morte, isto é, quando não deixamos o Senhor Jesus vencer no nosso co- ração e na nossa vida. Ele, que já derrotou a morte abrindo-nos a senda da salvação eter- na, dissipe as trevas da nossa pobre humani- dade e introduza-nos no seu dia glorioso, que não conhece ocaso.
Com estas reflexões, gostaria de vos de- sejar a todos uma Páscoa feliz.
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A um exército invisível
Queridos37 amigos,
Lembro-me com frequência de nossos encontros: dois no Vaticano e um em Santa Cruz de la Sierra e confesso que essa “me- mória” me faz bem, me aproxima de vocês, me faz repensar em tantos diálogos durante esses encontros e em tantas esperanças que ali nasceram e cresceram e muitos delas se torna- ram realidade. Agora, no meio dessa pande- mia, eu me lembro de vocês de uma maneira especial e quero estar perto de vocês.
Nestes dias de tanta angústia e dificul- dade, muitos se referiram à pandemia que so- fremos com metáforas bélicas. Se a luta contra o COVID-19 é uma guerra, vocês são um ver- dadeiro exército invisível que luta nas trin- cheiras mais perigosas. Um exército sem ou- tra arma senão a solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade que reverdecem nos dias de hoje em que ninguém se salva sozi- nho. Vocês são para mim, como lhes disse em nossas reuniões, verdadeiros poetas sociais,
37 Carta aos Movimentos Populares, 12 de abril de 2020.
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que desde as periferias esquecidas criam so- luções dignas para os problemas mais pre- mentes dos excluídos.
Eu sei que muitas vezes vocês não são reconhecidos adequadamente porque, para este sistema, são verdadeiramente invisíveis. As soluções do mercado não chegam às peri- ferias e a presença protetora do Estado é es- cassa. Nem vocês têm os recursos para reali- zar as funções próprias do Estado. Vocês são vistos com suspeita por superarem a mera filantropia por meio da organização comuni- tária ou por reivindicarem seus direitos, em vez de ficarem resignados à espera de ver se alguma migalha cai daqueles que detêm o po- der econômico. Muitas vezes mastigam raiva e impotência quando veem as desigualdades que persistem mesmo quando terminam to- das as desculpas para sustentar privilégios. No entanto, vocês não se encerram na denún- cia: arregaçam as mangas e continuam a tra- balhar para suas famílias, seus bairros, para o bem comum. Essa atitude de vocês me ajuda, questiona e ensina muito.
Penso nas pessoas, especialmente mu- lheres, que multiplicam o pão nos refeitórios comunitários, cozinhando com duas cebolas e um pacote de arroz um delicioso guisado para centenas de crianças, penso nos doentes, pen-
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so nos idosos. Elas nunca aparecem na mídia convencional. Tampouco os camponeses e os agricultores familiares, que continuam a traba- lhar para produzir alimentos saudáveis, sem destruir a natureza, sem monopolizá-los ou especular com a necessidade do povo. Quero que saibam que nosso Pai Celestial olha para vocês, vos valoriza, reconhece e fortalece em sua escolha. Quão difícil é ficar em casa para quem mora em uma pequena casa precária ou para quem de fato não tem teto. Quão difícil é para os migrantes, as pessoas privadas de li- berdade ou para aqueles que realizam um pro- cesso de cura para dependências. Vocês estão lá, colocando seu corpo ao lado deles, para tor- nar as coisas menos difíceis, menos dolorosas. Congratulo a vocês e agradeço do fundo do meu coração. Espero que os governos enten- dam que os paradigmas tecnocráticos (sejam centrados no estado, sejam centrados no mer- cado) não são suficientes para enfrentar esta crise e nem os outros problemas importantes da humanidade. Agora, mais do que nunca, são as pessoas, as comunidades, os povos que devem estar no centro, unidos para curar, cui- dar, compartilhar.
Eu sei que vocês foram excluídos dos benefícios da globalização. Não desfrutam daqueles prazeres superficiais que aneste-
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siam tantas consciências. Apesar disso, vocês sempre sofrem os danos dessa globalização. Os males que afligem a todos, a vocês atingem duplamente. Muitos de vocês vivem o dia a dia sem nenhum tipo de garantias legais que os protejam. Os vendedores ambulantes, os recicladores, os feirantes, os pequenos agri- cultores, os pedreiros, as costureiras, os que realizam diferentes tarefas de cuidado. Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular, não têm um salário estável para resistir a esse momento ... e as quarente- nas são insuportáveis para vocês. Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e in- substituíveis que vocês realizam; capaz de ga- rantir e tornar realidade esse slogan tão huma- no e cristão: nenhum trabalhador sem direitos.
Também gostaria de convidá-los a pen- sar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisa- dos, têm a cultura, a metodologia, mas princi- palmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvol- vimento humano integral que ansiamos, fo- cado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três
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T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho. Espero que esse momento de perigo nos tire do piloto automático, sacuda nossas consciências adormecidas e permita uma con- versão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e coloque a digni- dade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva e individualista, com suas taxas frenéticas de produção e consumo, seus luxos excessivos e lucros desmedidos para pou- cos, precisa mudar, se repensar, se regenerar. Vocês são construtores indispensáveis des- sa mudança urgente; além disso, vocês pos- suem uma voz autorizada para testemunhar que isso é possível. Vocês conhecem crises e privações ... que com modéstia, dignidade, comprometimento, esforço e solidariedade, conseguem transformar em uma promessa de vida para suas famílias e comunidades.
Mantenham vossa luta e cuidem-se como irmãos. Oro por vocês, oro com vocês e quero pedir ao nosso Deus Pai que os aben- çoe, encha vocês com o seu amor e os defenda ao longo do caminho, dando-lhes a força que nos mantém vivos e não desaponta: a espe- rança. Por favor, orem por mim que eu tam- bém preciso.
Fraternalmente
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um PlAno PArA ressurgir
“Jesus38 apresentou-se diante delas e disse-lhes: ‘Alegrai-vos’” (cf. Mt 28,9). São as primeiras palavras do Ressuscitado depois que Maria Madalena e a outra Maria desco- briram o sepulcro vazio, deparando-se com o anjo. O Senhor vai ao encontro delas para transformar o seu luto em alegria e para as consolar no meio das aflições (cf. Jr 31,13). É o Ressuscitado que quer ressuscitar as mu- lheres e, com elas, a humanidade inteira para uma nova vida. Quer que comecemos a parti- cipar já da condição de ressuscitados que nos espera.
Convidar à alegria poderia parecer-nos uma provocação, e até uma piada de mau gosto, diante das graves consequências que estamos a sofrer por causa da Covid-19. Não são poucos aqueles que, como os discípulos de Emaús, o podem considerar um gesto de ignorância ou irresponsabilidade (cf. Lc 24,17-
38 Carta redigida em espanhol, enviada a «Vida Nueva», revista e portal de notícias religiosas e eclesiásticas, que a publicou no dia 17 de abril. A tradução portuguesa foi feita por L’Osservatore Romano.
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19). Como as primeiras discípulas que foram ao sepulcro, vivemos circundados por um clima de dor e de incerteza, que nos leva a perguntar-nos: «Quem removerá a pedra do sepulcro para nós? » (Mc 16,3). Como enfren- taremos esta situação, que nos dominou com- pletamente? O impacto de tudo o que está a acontecer, as graves consequências que já se assinalam e se divisam, a dor e o luto pelos nossos entes queridos desorientam-nos, an- gustiam-nos e paralisam-nos. É o peso da pe- dra sepulcral que se impõe perante o futuro e que, com o seu realismo, ameaça enterrar toda a esperança. É o peso da angústia de pessoas vulneráveis e idosas que passam pela quarentena na solidão mais absoluta, é o peso das famílias que já não sabem como pôr na mesa um prato de comida, é o peso dos pro- fissionais da saúde e da segurança, quando se sentem exaustos e sobrecarregados... este peso que parece ter a última palavra.
No entanto, é comovedor recordar a ati- tude das mulheres do Evangelho. Perante as dúvidas, o sofrimento, a perplexidade e até o medo da perseguição e de tudo o que lhes po- deria ter acontecido, conseguiram pôr-se em movimento e não se deixarem paralisar pelo que estava a acontecer. Por amor ao Mestre, e com aquele típico génio feminino, insubsti-
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tuível e abençoado, foram capazes de aceitar a vida tal como se apresentava e, astutamen- te, de contornar os obstáculos para estar ao lado do seu Senhor. Ao contrário de muitos dos Apóstolos que fugiram, dominados pelo medo e pela insegurança, que negaram o Se- nhor e fugiram (cf. Jo 18,25-27), elas, sem fugir nem ignorar o que estava a acontecer, sem fu- gir nem escapar... simplesmente souberam es- tar presentes e acompanhar. Como as primei- ras discípulas que, no meio da escuridão e do desânimo, encheram a sua bolsa de óleos aro- máticos e partiram para ungir o Mestre sepul- tado (cf. Mc 16,1), também nós pudemos ver, durante este tempo, muitos que procuraram levar a unção da corresponsabilidade para cuidar e não pôr em risco a vida dos outros. Ao contrário dos que fugiram na esperança de se salvar a si próprios, fomos testemunhas do modo como vizinhos e familiares se com- prometeram, com esforço e sacrifício, a per- manecer em casa e assim a impedir a propa- gação. Descobrimos que muitas pessoas, que já viviam e tinham de enfrentar a pandemia da exclusão e da indiferença, continuaram a trabalhar, acompanhando e apoiando-se umas às outras, para que a situação seja (ou melhor, fosse) menos dolorosa. Vimos a un- ção ser derramada por médicos, enfermeiros
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e enfermeiras, armazenistas, pessoal de lim- peza, cuidadores, transportadores, forças de segurança, voluntários, sacerdotes, religiosas, avós, educadores e muitos outros que tiveram a coragem de oferecer tudo o que tinham para proporcionar um pouco de cuidado, calma e coragem diante desta situação. Não obstante a pergunta continuasse a ser a mesma: « Quem removerá a pedra do sepulcro para nós? » (Mc 16,3), nenhum deles deixou de fazer o que sentia que podia e devia dar.
E foi justamente ali, no meio das suas ocupações e preocupações, que as discípulas foram surpreendidas por um anúncio vee- mente: « Não está aqui, ressuscitou! ». A unção delas não era para a morte, mas para a vida. A sua vigilância e acompanhamento do Senhor, até na morte e no maior desespero, não foi em vão; aliás, permitiu-lhes ser ungidas pela Res- surreição: não estavam sozinhas, Ele estava vivo e precedia-as ao longo do caminho. Só uma notícia veemente era capaz de quebrar o círculo que as impedia de ver que a pedra já tinha sido removida, e que o perfume derra- mado tinha mais capacidade de propagação do que aquilo que as ameaçava. Esta é a fonte da nossa alegria e esperança, que transforma a nossa ação: as nossas unções, a nossa dedi- cação... o nosso vigiar e acompanhar de todas
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as formas possíveis neste tempo não são nem serão vãos: não é dedicação à morte. Todas as vezes que participamos na Paixão do Senhor, acompanhamos a paixão dos nossos irmãos, vivendo também a mesma paixão, os nossos ouvidos ouvirão a novidade da Ressurreição: não estamos sozinhos, o Senhor precede-nos no nosso caminho, removendo as pedras que nos paralisam. Esta boa nova fez com que aquelas mulheres voltassem a percorrer os seus passos em busca dos Apóstolos e dos discípulos que ficaram escondidos para lhes dizer: «A vida arrancada, destruída, aniqui- lada na Cruz despertou e voltou a palpitar ».39 Esta é a nossa esperança, aquela que não nos poderá ser arrancada, silenciada nem conta- minada. Toda a vida de serviço e amor que oferecestes neste tempo voltará a pulsar. É su- ficiente abrir uma fenda para que a unção que o Senhor nos quer conceder se propague com força inexorável e nos permita contemplar a dolorosa realidade com um olhar renovador.
E, como as mulheres do Evangelho, tam- bém nós somos insistentemente convidados a percorrer de novo os nossos passos, deixan-
39 roMano guardini, El Señor. Meditaciones sobre la persona y la vida de Jesucristo, Cristiandad S.L., 2002, 504 (edição em portugués: O Senhor, Agir, 1964).
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do-nos transformar por este anúncio: com a sua novidade, o Senhor pode renovar sempre a nossa vida e a da nossa comunidade.40 Nes- ta terra desolada, o Senhor compromete-se a regenerar a beleza e a fazer renascer a es- perança: «Eis que vou fazer uma obra nova, que já surge: não a vedes?» (Is 43,19). Deus jamais abandona o seu povo, está sempre ao seu lado, especialmente quando a dor se torna mais presente.
Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que ninguém se salva sozinho. As fronteiras caem, as paredes desabam e todos os discursos fundamentalistas se dissolvem perante uma presença quase impercetível, que manifesta a fragilidade de que somos feitos. A Páscoa convoca-nos e convida-nos a recordar esta outra presença discreta e respei- tosa, generosa e reconciliadora, capaz de não quebrar a cana rachada, nem de apagar a me- cha que ainda fumega (cf. Is 42,2-3), para fazer pulsar a nova vida que quer conceder a todos nós. É o sopro do Espírito que abre horizon- tes, desperta a criatividade e nos renova na fraternidade para dizer “presente” (ou, eis- -me) perante a enorme e inadiável tarefa que
40 Cf. ex. ap. Evangelii gaudium, 24 de Novembro, 11.
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nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, junta- mente com outros, a dinâmicas que possam testemunhar e canalizar a nova vida que o Se- nhor quer gerar neste momento concreto da história. Este é o tempo favorável do Senhor, que nos pede para não nos conformarmos nem nos contentarmos e, ainda menos, para não nos justificarmos com lógicas substituti- vas ou paliativas, que nos impedem de supor- tar o impacto e as graves consequências do que estamos a viver. Este é o momento pro- pício para encontrar a coragem de uma nova imaginação do possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer. O Espírito, que não se deixa fechar nem instrumentalizar com esquemas, modalidades e estruturas fi- xas ou caducas, propõe-nos que nos unamos ao seu movimento, capaz de «renovar todas as coisas » (Ap 21,5).
Neste momento, compreendemos a im- portância de « unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral».41 Cada ação individual não é um ato isolado, para o bem ou para o mal. Tem consequências para os outros, pois na nossa
41 Laudato si’, 13.
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Casa comum tudo está interligado; as autori- dades da saúde ordenam o confinamento em casa, mas são as pessoas que o tornam possí- vel, conscientes da sua corresponsabilidade para impedir a pandemia. «Uma emergência como a da Covid-19 derrota-se antes de tudo com os anticorpos da solidariedade ».42 Uma lição que interromperá todo o fatalismo em que nos imergimos e nos permitirá sentir-nos novamente criadores e protagonistas de uma história comum e, assim, responder juntos a tantos males que afligem milhões de pessoas no mundo inteiro. Não podemos dar-nos ao luxo de escrever a história presente e futura vi- rando as costas ao sofrimento de tantos. É o Se- nhor que nos perguntará de novo: « Onde está o teu irmão?» (Gn 4,9) e, na nossa capacidade de resposta, possa revelar-se a alma dos nossos povos, aquele reservatório de esperança, fé e caridade em que fomos gerados e que, durante muito tempo, anestesiamos e silenciamos.
Se agirmos como um só povo, até dian- te das outras epidemias que nos ameaçam, poderemos ter um impacto real. Seremos ca- pazes de agir de forma responsável perante a
42 Pontifícia acadeMia Para a vida, Pandemia e fraternidade universal, Nota sobre a emergência de Covid-19, 30 de março de 2020, 4.
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fome que muitos sofrem, conscientes de que há comida para todos? Continuaremos a olhar para o outro lado, com um silêncio cúmplice face a guerras alimentadas por desejos de do- mínio e de poder? Estaremos dispostos a mu- dar os estilos de vida que afogam muitos na pobreza, promovendo e encontrando a cora- gem de levar uma vida mais austera e huma- na, que permita uma distribuição equitativa dos recursos? Tomaremos, como Comunida- de internacional, as medidas necessárias para impedir a devastação do meio ambiente, ou continuaremos a negar a evidência? A globa- lização da indiferença continuará a ameaçar e a tentar o nosso caminho... Que ela nos encon- tre com os necessários anticorpos da justiça, da caridade e da solidariedade. Não devemos ter medo de viver a alternativa da civilização do amor, que é « uma civilização da esperan- ça: contra a angústia e o medo, a tristeza e o desânimo, a passividade e o cansaço. A civi- lização do amor constrói-se diariamente, sem interrupções. Pressupõe um esforço concerta- do de todos. Para isto, requer uma comunida- de de irmãos comprometidos ».43
Espero que, neste tempo de tribulação
43 eduardo Pironio, Diálogo con laicos, Buenos Aires, Patria Grande 1986.
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e de luto, onde estiverdes possais fazer a ex- periência de Jesus, que vem ao teu encontro, te saúda e te diz: “Alegra-te” (cf. Mt 28,9). E que esta saudação nos mobilize para invocar e amplificar a boa nova do Reino de Deus.
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O egoísmo: um vírus AindA Pior
Queridos44 irmãos e irmãs, na provação que estamos a atravessar, também nós, com os nossos medos e as nossas dúvidas como Tomé, nos reconhecemos frágeis. Precisamos do Se- nhor, que, mais além das nossas fragilidades, vê em nós uma beleza indelével. Com Ele, des- cobrimo-nos preciosos nas nossas fragilidades. Descobrimos que somos como belíssimos cris- tais, simultaneamente frágeis e preciosos. E se formos transparentes diante d’Ele como o cris- tal, a sua luz – a luz da misericórdia – brilhará em nós e, por nosso intermédio, no mundo. Eis aqui o motivo para exultarmos « de alegria – como diz a primeira Carta de Pedro –, se bem que, por algum tempo, [tenhamos] de andar aflitos por diversas provações » (1,6).
Nesta festa da Divina Misericórdia, o anúncio mais encantador chega através do discípulo mais atrasado. Só faltava ele, Tomé. Mas o Senhor esperou por ele. A misericór- dia não abandona quem fica para trás. Agora, enquanto pensamos numa recuperação lenta
44 Homilia para o II Domingo de Páscoa (o da Divi- na Misericórdia), igreja do Santo Espírito em Sassia, 19 de abril de 2020.
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e fadigosa da pandemia, é precisamente este perigo que se insinua: esquecer quem ficou para trás. O risco é que nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta. Transmi- te-se a partir da ideia que a vida melhora se vai melhor para mim, que tudo correrá bem se correr bem para mim. Começando daqui, chega-se a selecionar as pessoas, a descartar os pobres, a imolar no altar do progresso quem fica para trás. Esta pandemia, porém, lembra- -nos que não há diferenças nem fronteiras en- tre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos preciosos. Oxalá mexa con- nosco dentro o que está a acontecer: é tempo de remover as desigualdades, sanar a injusti- ça que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira! Aprendamos com a comunidade cristã primitiva, que recebera misericórdia e vivia usando de misericórdia, como descreve o livro dos Atos dos Apóstolos: os crentes « possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um » (At 2,44-45). Isto não é ideologia; é cristianismo.
Naquela comunidade, depois da ressur- reição de Jesus, apenas um ficara para trás e os outros esperaram por ele. Hoje parece dar-se o contrário: uma pequena parte da humani- dade avançou, enquanto a maioria ficou para
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trás. E alguém poderia dizer: « São problemas complexos, não cabe a mim cuidar dos neces- sitados; outros devem pensar neles ». Depois de encontrar Jesus, Santa Faustina escreveu: « Numa alma sofredora, devemos ver Jesus Crucificado e não um parasita nem um far- do... [Senhor], dais-nos a possibilidade de nos exercitarmos nas obras de misericórdia, e nós exercitamo-nos nas murmurações» (Diário, 06/IX/1937). Mas, um dia, ela própria se la- mentou com Jesus dizendo que, para ser mi- sericordiosa, passava por ingénua: « Senhor, muitas vezes abusam da minha bondade ». E Jesus retorquiu: « Não importa, minha filha! Não te preocupes! Tu sê sempre misericor- diosa para com todos » (Diário, 24/XII/1937). Para com todos: não pensemos só nos nossos interesses, nos interesses parciais. Aproveite- mos esta prova como uma oportunidade para preparar o amanhã de todos, sem descartar ninguém. De todos. Porque, sem uma visão de conjunto, não haverá futuro para ninguém.
Hoje, o amor desarmado e convincen- te de Jesus ressuscita o coração do discípulo. Também nós, como o apóstolo Tomé, aco- lhamos a misericórdia, que é a salvação do mundo. E usemos de misericórdia para com os mais frágeis: só assim reconstruiremos um mundo novo.
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PArA o mundo dos jornAis de ruA
As45 vidas de milhões de pessoas no nos- so mundo, que já se confrontam com tantos desafios difíceis e oprimidas pela pandemia, mudaram e estão a ser postas à prova. As pes- soas mais frágeis, os invisíveis, os sem-abrigo correm o risco de pagar a conta mais alta.
Por isso, quero saudar o mundo dos jor- nais de rua e, em especial, os seus vendedo- res, na sua maioria sem-abrigo, gravemente marginalizados, desempregados: milhares de pessoas em todo o mundo vivem e têm um emprego graças à venda destes jornais ex- traordinários.
Em Itália estou a pensar na bela expe- riência de Scarp de’ tenis, o projeto da Caritas que permite a mais de 130 pessoas em difi- culdade ter um rendimento e com ele aceder aos direitos fundamentais de cidadania. E isto não é tudo. Estou a pensar na experiência de mais de 100 jornais de rua de todo o mun- do, publicados em 35 países diferentes e em 25 línguas diversas, que garantem trabalho e rendimentos a mais de 20.500 pessoas sem-
45 Carta, 21 de abril de 2020.
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-abrigo no mundo. Há muitas semanas que os jornais de rua não são vendidos e os seus vendedores não conseguem trabalhar. Desejo expressar a minha proximidade a jornalistas, voluntários, pessoas que vivem graças a es- tes projetos e que, nestes tempos, trabalham com muitas ideias inovadoras. A pandemia tornou o vosso trabalho difícil, mas tenho a certeza de que a grande rede de jornais de rua do mundo voltará mais forte do que an- tes. Olhar para as pessoas mais pobres, nestes dias, pode ajudar-nos a todos a tomar cons- ciência do que realmente nos está a acontecer e da nossa verdadeira condição. A todos vós, a minha mensagem de encorajamento e de amizade fraterna. Obrigado pelo trabalho que desempenhais, pela informação que distribuís e pelas histórias de esperança que contais.
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suPerAr os desAfios globAis
Bom46 dia, estimados irmãos e irmãs!
Hoje celebramos o 50o Dia Mundial da Terra. É uma oportunidade para renovar o nosso compromisso de amar a nossa casa co- mum e de cuidar dela e dos membros mais fracos da nossa família. Como a trágica pande- mia do coronavírus nos demonstra, só unidos e cuidando dos mais frágeis podemos vencer os desafios globais. A Carta Encíclica Laudato si’ tem precisamente este subtítulo: “Sobre o cuidado da casa comum”. Hoje refletiremos um pouco juntos sobre esta responsabilida- de que distingue « a nossa passagem por esta terra ».47 Temos que crescer na consciência do cuidado da casa comum.
Somos feitos de matéria terrena, e os fru- tos da terra sustentam a nossa vida. Mas, como nos recorda o Livro do Génesis, não somos simplesmente “terrestres”: temos em nós tam- bém o sopro vital que vem de Deus (cf. Gn 2,4- 7). Portanto, vivemos na casa comum como
46 Catequese da Audiência Geral na ocasião do 50o Dia Mundial da Terra, 22 de abril de 2020.
47 Laudato si’, 160.
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uma família humana e na biodiversidade com as outras criaturas de Deus. Como imago Dei, imagem de Deus, somos chamados a cuidar e respeitar todas as criaturas e a nutrir amor e compaixão pelos nossos irmãos e irmãs, es- pecialmente pelos mais fracos, à imitação do amor de Deus por nós, manifestado no seu Filho Jesus, que se fez homem para partilhar connosco esta situação e para nos salvar.
Devido ao egoísmo, falhamos na nossa responsabilidade de guardiães e administra- dores da Terra. « Basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande de- terioração da nossa casa comum ».48 Poluímo- -la, saqueámo-la, colocando em perigo a nos- sa própria vida. Por isso, formaram-se vários movimentos internacionais e locais para des- pertar as consciências. Aprecio sinceramente estas iniciativas e ainda será necessário que os nossos filhos saiam às ruas para nos ensinar o que é óbvio, ou seja, que não há futuro para nós se destruirmos o meio ambiente que nos sustenta.
Falhamos na preservação da terra, da nossa casa-jardim, e na tutela dos nossos ir- mãos. Pecamos contra a terra, contra o nosso
48 Ibid., 61. 60
próximo e, em última análise, contra o Cria- dor, o bom Pai que vela sobre todos e quer que vivamos juntos em comunhão e prospe- ridade. E como reage a Terra? Há um ditado espanhol que é muito claro sobre isto, e diz assim: “Deus perdoa sempre; nós, homens, às vezes; a terra, nunca”. A terra não perdoa: se deteriorarmos a terra, a resposta será terrível.
Como podemos restabelecer uma re- lação harmoniosa com a Terra e com o resto da humanidade? Uma relação harmoniosa... Muitas vezes perdemos a visão da harmonia: a harmonia é obra do Espírito Santo. Inclusive na casa comum, na Terra, até no nosso rela- cionamento com as pessoas, com o próximo, com os mais pobres, como podemos restabe- lecer esta harmonia? Precisamos de uma nova forma de considerar a nossa casa comum. Atenção, ela não é um depósito de recursos a explorar. Para nós crentes, o mundo natu- ral é o “Evangelho da Criação”, que exprime o poder criador de Deus de plasmar a vida humana e de fazer com que o mundo exista juntamente com quanto contém para susten- tar a humanidade. A narração bíblica da Cria- ção conclui da seguinte forma: « Deus con- templou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom » (Gn 1,31). Quando vemos estas tragédias naturais, que são a resposta da Ter-
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ra aos nossos maus-tratos, penso: “Se agora eu perguntar ao Senhor o que pensa Ele disto, acho que não me dirá que é algo muito bom. Fomos nós que arruinamos a obra do Senhor!
Ao celebrarmos hoje o Dia Mundial da Terra, somos chamados a reencontrar o senti- do do respeito sagrado pela Terra, porque ela não é apenas a nossa casa, mas também a casa de Deus. É daqui que brota em nós a cons- ciência de estarmos num terreno sagrado!
Caros irmãos e irmãs, « despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus co- locou em nós ».49 A profecia da contemplação é algo que aprendemos sobretudo dos povos originários, os quais nos ensinam que não po- demos cuidar da Terra se não a amamos nem a respeitamos. Eles têm esta sabedoria do “bem-viver”, não no sentido de passar bem, não: mas de viver em harmonia com a Terra. Eles chamam a esta harmonia “bem-viver”.
Ao mesmo tempo, precisamos de uma conversão ecológica que se exprima em obras concretas. Como família única e interdepen- dente, temos necessidade de um plano com- partilhado, para prevenir as ameaças contra
49 Ex. ap. pós-sin. Querida Amazonia, 2 de Feve- reiro, 56).
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a nossa casa comum. « A interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum ».50 Estamos conscientes da importância de colaborar como comunidade internacional para a salvaguarda da nossa casa comum. Exorto quantos têm autoridade a liderar o processo que levará a duas gran- des Conferências internacionais: a COP15 sobre a Biodiversidade, em Kunming (China), e a COP26 sobre as Mudanças Climáticas, em Glasgow (Reino Unido). Estes dois encontros são deveras importantes.
Gostaria de encorajar a organização de ações conjuntas também a nível nacional e local. É bom convergir de todas as condições sociais e criar também um movimento po- pular “a partir de baixo”. Foi precisamente assim que nasceu o próprio Dia Mundial da Terra, que hoje celebramos. Cada um de nós pode dar a sua pequena contribuição: « E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas ações espalham na sociedade um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam no seio desta terra um bem que tende sempre a difundir-se, às vezes invisivelmente ».51
50 Laudato si’, 164.
51 Ibid., 212.
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Neste tempo pascal de renovação, es- forcemo-nos por amar e apreciar o magnífico dom da terra, nossa casa comum, e por cui- dar de todos os membros da família huma- na. Como irmãos e irmãs que somos, implo- remos juntos ao nosso Pai celestial: “Enviai o vosso Espírito e renovai a face da terra” (cf. Sl 104,30).
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Índice Prefácio................. 3
Porque sois tão medrosos?
Mensagem Urbi et orbi durante o Momento Ex- traordinário de oração em tempo de epidemia, 27 de
março de 2020. . . . . . . . . . . . . . 19
A preparação para o depois é importante
Carta a Roberto Andrés Gallardo, 30 de março de 2020 27
Como uma nova chama
Mensagem Urbi et orbi – Páscoa 2020, Basílica Va-
ticana, 12 de abril de 2020. . . . . . . . . . 29
A um exército invisível
Carta aos Movimentos Populares, 12 de abril de 2020 37
Um plano para ressurgir
Carta redigida em espanhol, enviada a « Vida Nue-
va », revista e portal de notícias religiosas e eclesiás-
ticas, que a publicou no dia 17 de abril. . . . . . 43
O egoísmo: um vírus ainda pior
Homilia para o II Domingo de Páscoa (o da Divina Misericórdia), 19 de abril de 2020 . . . . . . . 53
Para o mundo dos jornais de rua
Carta, 21 de abril de 2020 . . . . . . . . . . 57
Superar os desafios globais
Catequese da Audiência Geral na ocasião do 50o Dia
Mundial da Terra, 22 de abril de 2020 . . . . . 59
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Se agirmos como um só povo,
até diante das outras epidemias que nos ameaçam, poderemos ter um impacto real. [...]
A globalização da indiferença continuará a ameaçar e a tentar o nosso caminho...
Que ela nos encontre com os necessários anticorpos da justiça, da caridade e da solidariedade.
Não devemos ter medo de viver a alternativa da civilização do amor [...].
Espero que, neste tempo de tribulação e de luto, onde estiverdes possais fazer a experiência de Jesus, que vem ao teu encontro,
te saúda e te diz: “Alegra-te” (cf. Mt 28,9).
E que esta saudação nos mobilize para invocar e amplificar a boa nova do Reino de Deus.
ISBN 978-88-266-0435-0
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9 788826 604350
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PaPa Francesco
VIDA
APRÓS A PANDEMIA Prefácio pelo cardeal Michael Czerny, SJ
PAPA FRANCESCO
PaPa Francesco
VIDA
DIVERSI E UNITI
APÓS A PANDEMIA
com-unico quindi sono
Prefácio pelo
Con prefazione del
cardeal Michael Czerny, SJ
Justin P. Welby arcivescovo di canterbury Primate della chiesa anglicana
Na capa:
© Daniele Garofani
Para o texto: Um plano para ressuscitar
Texto original em espanhol: © Vida Nueva Tradução portuguesa: © L’Osservatore Romano
© Copyright 2020 – Libreria Editrice Vaticana 00120 Città del Vaticano
Tel. 06.698.45780 - Fax 06.698.84716 E-mail: commerciale.lev@spc.va
ISBN 978-88-266-0435-0
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TIPOGRAFIA VATICANA
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