sexta-feira, 2 de maio de 2014

O BOM LADRÃO


                        Em um texto recente, eu afirmei que todo murmurador é como o mau ladrão do evangelho. E que, na verdade, todos nós somos injustos, ladrões da glória de Deus. Não há justiça ou honestidade oponíveis a Deus. Diante de Deus, ninguém reclama com justiça. Toda reclamação ou murmúrio dirigidos a Deus são injustos.

 

                        Gostaria de avançar um pouco nessa meditação. Tenho para mim que todos nós estamos representados na paixão e morte do Senhor. A humanidade divide-se entre os dois ladrões, pois, repito, diante da inconcebível pureza de Deus, não há quem possa alegar inocência. (Se soubéssemos do que vamos prestar contas após a nossa morte, certamente surpreender-nos-íamos com o nível de exigência, lembra Santa Faustina. No Juízo Final, só teremos roubos a apresentar a Deus, pois até as nossas boas ações foi Ele quem fez em nós.) A única diferença é que uns têm consciência de que sofrem justamente – “para nós é justo. Ele, porém, não fez mal algum”, diz o bom ladrão –, outros, não. Ainda hoje diz o mau ladrão: “Se és o filho de Deus, salva-te a ti mesmo e a nós”. Quem sabe se ele não quer dizer: “salva a tua Igreja e a nós dos males deste mundo”?

 

                        O bom ladrão também pede o auxílio divino. Ele não é autossuficiente. Ele é consciente de que não tem boas obras em que se apoiar para reivindicar alguma coisa. Mas os seus olhos estão postos no reino vindouro, em realidades transcendentes, mais altas: “Lembra-te de mim quando vieres em teu reino”. O mau ladrão é imediatista. Primeiro, ele questiona, põe em dúvida, o poder de Cristo. Em seguida, ele pede alívio instantâneo, temporal, mundano: “salva-te a ti mesmo e a nós” [da cruz, da morte, do sofrimento neste mundo]. O mau ladrão não enfrenta o sofrimento com ânimo de reparação. O bom ladrão, sim. Aliás, completamente nu na cruz, preso pelas mãos e pelos pés, a única coisa que o bom ladrão poderia oferecer a Deus era a reparação, a aceitação da dor. Por isso mesmo, ele entrou no paraíso naquele mesmo dia. Mais do que isso: ele é um dos santos da Igreja, São Dimas.

 

                        Queixamo-nos de Deus pela desordem em que o mundo anda. Mas, quem violou a ordem querida por Deus foi o homem, não o próprio Deus, que não pode contradizer-se. É curioso o modo de o homem encarar o próprio pecado: “Ai, meu Deus! Eu não queria esse efeito, essa consequência do pecado que eu não tinha previsto!” Estranho esse comportamento, não?! Nós trazemos o pecado ao mundo, com suas consequências de múltiplas ordens, e nos queixamos de Deus por não impedir certas consequências dos nossos pecados. “Eu não queria que a minha desordem fosse tão desordenada!!”, “Eu não queria que a minha desobediência tivesse efeitos tão desastrosos!!”, pensamos. Ora, quando Deus proibiu o pecado, Ele o fez sabendo de todas as suas múltiplas consequências, inclusive aquela de atingir pessoas inocentes. Deus não é culpado de o bêbado atropelar e matar uma velhinha indefesa. Ou era obrigação do anjo da guarda da velhinha desviar o carro com as próprias mãos?

 

                        Os efeitos danosos do pecado são uma espécie de ação livre na causa. Ao cometermos o erro, somos responsáveis também pelos seus efeitos. Não é incumbência divina ficar tolhendo os efeitos de nossos atos de desobediência. Creio até que Deus o faça inúmeras vezes, por liberalidade, mas não há um direito nosso, oponível a Ele, a respeito disso.

 

                        O pecado é uma espécie de estelionato. O diabo, quando nos propõe uma ação má, o faz como o golpista que quer vender-nos o falso bilhete premiado da loteria. Ele promete uma realidade mundana ilusória, uma vantagem próxima falsa, contando também com uma certa malícia nossa, cupidez, propensão para o mal. O fruto da árvore da ciência do bem e do mal possuía bom aspecto. Comprado o bilhete falso, a ilusória alegria prometida, o pecador iludido não só deixa de lucrar o prêmio, como tem diminuído o seu verdadeiro patrimônio, a graça de Deus em sua alma. Saboreado o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, Adão e Eva não só não se tornaram deuses, como ficaram nus, pois antes a graça de Deus os vestia.

 

                        Nem sempre nos damos conta disto: o demônio cobra, e caro!, de quem quer trabalhar para ele. Ao invés de retribuir, ele cobra, ele engana, ele rouba. Ele arromba as portas da nossa alma, roubando-nos tudo o que ali temos de mais precioso, e não deixa nada. Os dois ladrões estão nus.

 

                        Deus ao contrário, que já nos deu tudo, recompensa-nos por trabalhar para Ele. 10, 20, 30, 100 por um!

 

                        O direito contempla a hipótese de deserdação por ingratidão. No plano espiritual acontece algo semelhante: toda vez que pecamos usamos os bens que nos foram doados por Deus contra o próprio doador. Toda pecado é uma ingratidão, uma ofensa ao Doador de todos os dons. Nada mais justo seria que fôssemos deserdados.

 

                        Até para pecar nada usamos de próprio. Tudo o que usamos no pecado nos foi doado por Deus: o corpo, a memória, a vontade, os bens. Todos os dons nos foram doados para o louvor da glória de Deus, mas nós os empregamos para o nosso próprio deleite. Somos ou não usurpadores? Somos ou não somos ladrões?

 

                        Mas eu não digo essas palavras para desanimar ninguém. E não as digo como quem se encontra em melhor situação espiritual. Ao contrário, faço-o como doutor honoris causa em pecado. Digo-o apenas para lembrá-los e, ao lembrá-los, lembrar-me de que até o último momento podemos tornar-nos o bom ladrão. Não seremos felizes buscando a nossa própria glória, buscando-nos a nós mesmos, pois isso não é amor. Seremos felizes buscando um Outro, a glória de Outro, para que todos nós e tudo quanto existe está pré-ordenado. Deus, que é o próprio amor em Três Pessoas que se amam, estabeleceu que nos salvemos pelo amor.

 

 

Paul Medeiros Krause

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