Em
primeiro lugar, quero fazer saber ao leitor que me sinto indigno de dirigir-lhe
a palavra. Se há alguém que não sabe do que fala, esse alguém sou eu. Este
texto não é manifestação da minha sabedoria; ao contrário, o é da minha
intemperança. Os insensatos gostam de falar do que não sabem. Falam mais por
gosto do que por conhecimento ou competência. É este o caso. Eis a manifestação
da minha intemperança ou verborragia incontida.
Contudo,
ainda assim, gostaria de atrever-me a dirigir-lhe a palavra a propósito de algo
sobre que penso algumas vezes: a dor, o sofrimento. A dor é um mistério. Por
vezes, causa um incômodo inaudito, insuportável. Aparentemente, o sofrimento é
um acontecimento ilógico, uma contradição da natureza, um paradoxo divino. Se
Deus ama-nos e é onipotente, por que permite o sofrimento?
Há quem diga que
a Igreja Católica gosta de incutir nas pessoas o sentimento de culpa. Há quem
afirme que a Igreja de Roma vê mal em tudo e em todos e que seja vítima de
terrível pessimismo. Ouso pensar de forma contrária. Se há algum excesso no
catolicismo, é de otimismo.
A
minha desconfiança, por vezes, é a de que a Igreja não nos conta toda a
verdade. Ou, pelo menos, não insiste tanto nela. Não que ela, a Esposa de Jesus
Cristo, seja desonesta conosco, longe disso. A minha sensação é a de que ela
não quer esmagar-nos, desanimar-nos. Ela não revela logo ao doente toda a
gravidade da sua doença. A minha suposição é a de que a realidade do pecado é
muito mais grave, desesperadora e terrível do que imaginamos.
Somente quem não
se conhece suficientemente e ignora a gravidade do que seja um simples pecado
venial, pode achar que sofre injustamente. Só quem não conhece a própria
malícia e não faz a ideia mais pálida que seja da pureza inconcebível de Deus
pode chegar ao tresloucado e disparatado ato de dizer que sofre injustamente.
Essas pessoas – e eu mesmo quando me queixo das minhas unhas encravadas! – são o
mau ladrão do Evangelho, que, mesmo sendo bandido, queixa-se a Cristo por estar
sendo crucificado. Aquele ladrão queixoso, que tanta revolta nos causa!, somos
nós: todo murmurador é um mau ladrão! Ladrões, usurpadores da glória de Deus,
todos somos pelo pecado. Mas podemos escolher ser o bom ladrão.
Quanto a isto
estou plenamente convencido: não há quem sofra injustamente. A não ser Cristo e
Nossa Senhora, todos pecamos. O pecado é uma realidade gravíssima. Causa uma
desordem tal na nossa relação com Deus, na nossa relação com os outros homens,
na nossa relação com nós mesmos e com a natureza que não somos capazes de
imaginar. Basta dizer que é uma ofensa a um ser infinito, Deus. Ora, uma ofensa
a um ser infinito, por imperativo de justiça, exige uma reparação infinita.
Qualquer sofrimento que tenhamos, por maior que seja, é insuficiente para
reparar as ofensas que fazemos a Deus. Respeito quem pense o contrário. Mas
permita-me dizer-lhe que padece de uma cegueira brutal. Acredite: a realidade é
que você sofre pouquíssimo, bem menos do que merece!
Assim,
a primeira conclusão a que chego é a de que nenhum sofrimento é injusto. Que
ninguém se atreva a queixar-se. Oferecendo o seu sofrimento a Deus como
reparação dos seus pecados, você ainda é um devedor falido que não tem com que
pagar a sua dívida. O Evangelho afirma isso.
O
segundo ponto das minhas reflexões é: o sofrimento é um ato de confiança de
Deus no homem. Ao permitir-nos sofrer, Deus mostra-nos que não somos feitos de
açúcar. Mais do que isso. Ele revela-nos que somos meninos mimados, que, na
verdade, são muito mais capazes de sofrer do que imaginam. O nosso limite, o
limite do suportável, vai muito além do que pensamos ou do que gostaríamos. Mas
é nesse muito além que brotam os atos de heroísmo.
O
caso do menino Bernardo, pelo que se supõe, assassinado pelo pai e pela
madrasta, em um primeiro momento, desconcerta-nos, aflige-nos, deixa-nos
perplexos. O mistério da iniquidade, o mistério da maldade trava-nos o
raciocínio. Quebra-nos as pernas. Corta-nos as asas. Prostra-nos.
Não
há dúvida de que a história trágica, dilacerante, de Bernardo esmaga-nos.
Deixa-nos moídos, despedaçados. Contudo, não me soa irrazoável supor que diante
da grandeza do paraíso de que ele agora goza, e que é eterno, todo o seu mal na
terra não passou de umas cócegas, de uma coceira.
Será
que nós meditamos de fato no que alguns teólogos dizem: a menor pena no
purgatório é maior do que o maior sofrimento da terra? Assim, não estará Deus,
muitas vezes, trocando uma pena maior no purgatório por uma pena menor nesta
terra? Será que temos bem presente o que dizia São Paulo, que o prêmio da vida
futura não tem proporção, não tem parâmetro de comparação com os males da vida
presente?
Não
nos enganemos: todo pecado exige reparação. A Igreja ensina que quando
recebemos a absolvição na confissão a nossa culpa é perdoada, mas não a nossa
pena temporal no purgatório. Além disso, a esse mundo governado pelo egoísmo e
pelo individualismo, é bom recordar: vivemos a comunhão dos santos. Uma alma
que se eleva, eleva o mundo. Uma alma que cai, faz cair o mundo. Estamos
ligados uns aos outros por uma espécie de comunhão ou linha invisível. Cristo
poderia ter reparado todas as nossas penas no purgatório, a sua paixão era
suficiente para isso, mas ele não concedeu essa graça de forma automática. É
possível obter a reparação integral da pena temporal por meio das indulgências
plenárias. Mas não são todos os que recorrem a esse tesouro espiritual
depositado nas mãos da Igreja. Tudo indica que uns reparam pelos outros. Parece
absolutamente certo que algumas pessoas reparam em lugar de outras. É bem
possível que seja o caso de Bernardo. Se com Cristo foi assim, por que não
seria conosco? Se Deus assumiu a condição humana, por que não assumiríamos em
parte a paixão divina? Se Deus se solidarizou conosco, por que não nos
solidarizaríamos com ele e com os outros homens?
Como
quer que seja, Simão Cirineu grita-nos alguma coisa. A paixão de Cristo é
suficiente para eliminar toda a nossa culpa e toda a nossa pena. Mas Deus, nos
insondáveis mistérios da sua Providência, quis que Simão Cirineu, na verdade,
toda a humanidade, se lhe associasse, de alguma forma, no caminho do calvário.
Deus quis que participássemos, de alguma maneira, do calvário. Notemos que o
Cirineu não se ofereceu. Ele foi obrigado a carregar por alguns momentos a cruz
de Cristo. Talvez aquela gota de água derramada no cálice de vinho do ofertório
signifique a nossa minúscula participação no sofrimento redentor de Cristo.
Convido
o leitor a fazer um pouco de discernimento dos espíritos. Observemos bem como
são as obras de Deus: elas são como um banho frio. No começo, o banho frio é
incômodo e difícil; no meio, acostumamo-nos a ele; no final e depois do final,
dá mais prazer e mais duradouro do que um banho quente. As obras de Deus
causam-nos um desconforto no instante inicial e uma paz longa e duradoura no
final e após o final. Assim é a quaresma. Assim é a nossa vida, que é uma
espécie de quaresma, de prelúdio da páscoa definitiva.
As
obras do demônio funcionam de modo inverso: o prazer máximo, por curtíssimo
instante, vem no começo; no meio da ação, já estamos enjoados; no final e após
o final, sentimos um amargor perene. Por um prazer de cinco minutos,
desgraçamos a nossa vida inteira. Assim é o pecado. Assim é a vida de pecados,
a que se segue a insatisfação eterna, o inferno de tormentos.
Não
sei se alguém já observou que o tempo pascal é superior em número de dias ao
período da quaresma. E por ensinamento do próprio Santo Agostinho são
desestimulados o jejum e as penitências corporais no período pascal, que é como
que o dia de páscoa estendido até pentecostes.
Vendo
por esse prisma, a quaresma, a exigência de mortificação, soa quase como uma
brincadeira de Deus. Ele pede-nos uma privação de quarenta dias, para depois
dar-nos um período de festa de cinquenta dias!...
Mas
essa é a lógica de Deus. Atrevo-me a dizer que o sofrimento é uma brincadeira
de Deus com os homens. Há uma tal desproporção entre o sofrimento e a
recompensa, que diante desta aquele é uma cócega, apenas uma coceira.
Se
observarmos bem, esse tempo quaresmal, com seus quarenta dias que são uma
figura da nossa vida, da nossa penosa peregrinação rumo ao paraíso, é uma pausa
restauradora. A Igreja em sua sabedoria demarcou um tempo nem exageradamente
extenso, nem demasiadamente curto. Em quarenta dias é possível começar a
arrancar os maus hábitos, a sair da má rotina, a puxar pela raiz os vícios, a
dar ao corpo uma espécie de convalescença pelas surras que levou dos próprios
pecados.
A
nossa vida, por decreto divino, também não será excessivamente extensa nem
excessivamente curta. A nossa vida, a nossa vida amarga, o nosso desterro de
misérias, a nossa quaresma personalíssima prepara-nos para uma páscoa de bem
mais de cinquenta dias.
Voltemos
ao pensamento de São Paulo. Os sofrimentos dessa vida não têm comparação com a
recompensa futura. Aguarda-nos o banquete pascal da eternidade. O sofrimento é
uma brincadeira de Deus.
Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo
Horizonte
No dia de São Luís Maria Grignion de
Montfort
Véspera de Santa Catarina de Sena,
doutora da Igreja e padroeira da Itália
28 de abril de 2014
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