Há exatos trinta e nove anos na Igreja
Evangélica de Confissão Luterana da Rua Dona Salvadora, meus pais, Rosa e
Paulo, em cerimônia ecumênica, prometiam um ao outro e a Deus amar-se
mutuamente enquanto a morte não se atrevesse a meter-se de permeio. Causa-me
pena não ter estado presente a tão relevante acontecimento familiar, e que
tanto me dizia respeito, mas é que eu ainda não havia sido aquinhoado com o dom
da existência.
Talvez naquele mesmo primeiro de
fevereiro, ou poucos dias depois, minhas duas antigas metades microscópicas,
que separadas ainda não eram eu, acabaram encontrando-se e fundindo-se como
duas almas gêmeas. E eu comecei.
Não vou revelar à indiscrição do leitor
os motivos pelos quais aquele juramento não surtiu todo o efeito que o cimento
da indissolubilidade devia ter produzido (um padre católico concelebrou). Fato
é, porém, que graças a um decreto de superior instância estou aqui, pois aquele
acidental cruzamento de destinos resultou na feliz consequência, pelo menos para
mim, do meu chamamento ao mundo. A inexistência, imagino, deve conter uma
estranha monotonia...
Bendito erro, imprudência proverbial! Parece
que sucessivos equívocos encaixaram-se e moveram algum tipo de engrenagem de
causalidades. Foi a força de uma decisão mal tomada que me permitiu estar aqui
hoje, leitor, dirigindo-lhe algumas palavras. Não gostaria que fossem apagados
meus anos já vividos. Por isso, repito: abençoada sucessão de equívocos que me
permitiu ter os próprios!
Mas, o meu ato de louvor à vida, de
gratidão por ser, não me impede de reconhecer que nossos pais falharam. Sim,
nossos pais, e não somente os meus. Olhemos juntos para as nossas famílias.
A Belo Horizonte de hoje não é a mesma
de trinta anos atrás. Suponho que o mesmo se dê com quase todas as cidades
brasileiras. Algum estranho vírus atingiu nossos pais e carcomeu nossos tios.
Misturaram alguma coisa a nossos entes queridos (ou aos laços que os uniam).
Até nossos avós aquela saborosa bebida de festa, o convívio familiar, era
substanciosa, energética, tonificante, uma vitamina. Nossos avós derreteram, dissolveram-se
nossos tios como papel exposto à chuva. Alguém misturou meus avós com água, e
com ácido os do vizinho. Meus pais são meus avós diluídos.
Houve uma mutação cromossômica, uma
alteração de moléculas na composição dos vínculos.
O meu maior temor é que este processo
químico continue acontecendo. Que algum nefasto elemento continue sendo
adicionado à fórmula das famílias. Temo que esta adulteração não se tenha interrompido
nos responsáveis pelo nosso aparecimento. Não duvido que entre meus pais e eu mais
água ou ácido tenham sido vertidos. Que será de meus netos? Que será de meus
filhos?
Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo Horizonte
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