Às vezes, parece-me que o único problema
do mundo é a simplificação. Os nominalistas diziam – salvo engano, o próprio
Guilherme de Ockham –: “não se devem
multiplicar os entes sem necessidade”. Isso é certo. Os romanos possuíam um
deus para proteger a porta, outro, para os umbrais, outro ainda para
salvaguardar a dobradiça[1]. Se
um deus é incapaz de proteger uma porta inteira, está claro não merecer tal
nome, inexistir tal ente. Contudo, por outro lado, também não se podem suprimir
os entes sem razão[2]. A simplificação corta
partes da realidade, converte uma verdade em mentira, contorce fatos, mutila a
explicação, amputa partes do mundo.
O diabo é o grande simplificador. Isso
fica claro já no livro do Gênesis: “É
verdade que Deus vos proibiu de comer de toda arvore jardim?” “Vós vos
tornareis deuses.” Ali, simplificou por generalização. Aqui, por omissão do
complemento: se comerdes do fruto da árvore, vós vos tornareis deuses para si mesmos. Estou convencido de que
uma mentira absoluta é uma impossibilidade lógica. Toda mentira é tão somente
uma verdade mutilada, amputada.
Não estou aqui a defender a prolixidade,
a complicação ou complexidade das respostas ou explicações. Defendo apenas que
sejam completas; e que haja coerência entre as partes e o todo. Todo aplauso
merece a simplicidade, onde é cabível, não a simplificação. Necessária é a
completude, não a complicação.
Vou dar um exemplo: que são a
pornografia e a fornicação senão simplificações? Elas resultam de uma visão
parcial, redutora, da sexualidade e do ser humano. Na pornografia e na
fornicação, eu vejo a outra pessoa tão somente como um objeto, um corpo, uma
matéria que me dá prazer. Não a vejo em sua integralidade ou inteireza. Amo
apenas partes dela. Não enxergo a sua alma.
A coisa é tão brutal que é bem possível
que eu ame apenas partes do corpo da pessoa, que nem mesmo o seu corpo eu ame
inteiro. Com toda a certeza, não identifico os fins da sua existência, que não
são os de estar ali pura e simplesmente para me dar prazer. Nem mesmo os meus
próprios fins eu identifico ao me lançar na fornicação. A finalidade da minha
existência não se resume a atingir sensações físicas. Somente uma visão
simplificadora, reducionista de mim mesmo, de meus fins, pode levar-me à
conclusão contrária. Tomo uma parte da verdade sobre outra pessoa e sobre mim,
isto é, somos compostos de matéria apta para o prazer, e desprezo outras realidades,
outros dados, outros aspectos.
A simplificação é tentadora porque ela
aparentemente facilita a compreensão do objeto pela inteligência, cortando os
braços dele. A Eva, o fruto da árvore proibida parecia muito apropriado para
abrir o intelecto. Aquele fruto era demasiadamente apetitoso à inteligência. Aquele
maldito fruto era a simplificação. Desde então o mal entrou no mundo com as
meias verdades e as verdades distorcidas. Cristo, a Verdade, veio revelar ao
homem o homem completo.
Mas, o homem moderno abdicou da
completude, cuspindo no prato que comeu. Preferiu ele o fruto saboroso das
filosofias simplificadoras. Ele vem rolando ladeira abaixo desde o advento do
nominalismo, surgido com o declínio da escolástica. É a simplificação burguesa,
com toda a mediocridade intelectual que a caracteriza. O homem não é mais um
ser que tem alma. É o homo oeconomicus. Ele
é visto pura e simplesmente como ser produtor ou usurpador de riqueza.
Retiraram a alma do homem. Expulsaram Deus do cosmos. Enxotaram os arcanjos. Reduziram
o mundo. Ficaram só com uma parte: a matéria visível. O invisível revelou-se
por demais complexo. Logo o que alguém disse ser o essencial.
O atual é o mundo da forma, da
aparência, do vil metal. Nada mais burguês do que o culto do corpo. Os
exercícios ascéticos de outrora foram substituídos pela malhação. Não importa
mais ao homem adornar a sua alma com virtudes, mas enfeitar seu corpo com
músculos. O homo oeconomicus não se
preocupa em ser bom, mas em ser belo. Ser pobre é feio.
Entendam bem: nada contra as academias.
Tudo contra o excesso, contra o modo de ver reducionista que só enxerga no
homem a forma ou a matéria. Só se falam em crises econômicas, como se a
economia determinasse toda a existência humana. Como se o mercado fornecesse
uma explicação completa sobre o ser humano, fosse a causa determinante da sua
felicidade ou infelicidade. Ei-la, novamente, a mutilação da verdade, a
amputação dos fatos, a simplificação da realidade.
No mundo das formas, que os pensadores
burgueses construíram, não importa se um sistema ou proposição filosóficos são
verdadeiros, mas sim se são belos, se têm bela aparência; importa a sua forma.
Importa se satisfazem exigências de caráter procedimental, formal.
Também o direito e a justiça tornaram-se
formas vazias. Quem se ocupa hoje da justiça real, material? Os tribunais só se
ocupam do rito, do procedimento. Ganham-se e perdem-se demandas quase que
exclusivamente em questões processuais. É o império das formas. Alguém já viu
uma questão processual ser prejudicada em favor de uma questão de mérito? A
regra é justamente oposta: uma questão processual pode trucidar o direito da
parte.
Que dizer dos ataques que a imprensa faz
à Igreja? Quantas vezes ela, sem investigar à exaustão todos os fatos, sem
reunir todas as informações requeridas, não formula questionamentos e objeções
fundamentados em argumentos inconsistentes, canhestramente simplificadores?
Existe simplificação mais brutal do que a ideia de “Idade das Trevas” atribuída
à Idade Média?
Quantas heresias não resultam de meras
simplificações? Que é o protestantismo senão uma grande simplificação: “sola scriptura”? Basta a fé, basta a
escritura. Não compliquemos lançando mão da tradição e do magistério e
salvaguardando a sua unidade. Simplifiquemos. O justo vive (apenas) da fé. A fé
nada tem que ver com a razão. Deus não está preso às leis da razão, dizem os
protestantes. Não existe purgatório. Apenas céu e inferno. “A razão é uma prostituta do diabo”, afirmou Lutero. Onde houvera
um grande esforço de síntese da fé e da razão, cujo máximo exemplo é a Suma
Teológica de Santo Tomás, surge a cisão simplificadora. Fé e razão
divorciam-se. Com essa cisão, a metafísica foi aos poucos expulsa do pensar
filosófico, cada dia mais dedicado a bagatelas.
Parece que todos os males do mundo
resultam de não reunirmos todos os fatos, não nos debruçarmos sobre todas as
informações, organizando-os e explicando-os de forma completa. Todo o engano
resulta de destruirmos entes sem motivo. Qual é o papel do amor no marxismo ou
no capitalismo? Como alguém pode pretender construir algum sistema, fornecer
uma visão de mundo, sem falar do amor, tão presente na música, na poesia, na
arte, na vida? Que é o homem sem amor? A doutrina dos dois amores de Santo
Agostinho é muito mais convincente; ela vai realmente ao cerne da questão: o
amor, não o capital, ainda que se trate do amor próprio ou o amor ao capital. Mas
os pensadores burgueses preferem um mundo simplificado, em que é expulso tudo o
que é invisível: o amor, Deus, os anjos e os demônios. Cortam os braços do
mundo para compreendê-lo com a mente.
Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo
Horizonte
[1]
“Cada
qual põe em casa um só porteiro, porque um homem é, sem dúvida, suficiente; os
romanos, entretanto, puseram três deuses: Fórculo, para as portas, Cardeia,
para os gonzos, Limentino para os umbrais. Tão impossível era que Fórculo
cuidasse ao mesmo tempo dos gonzos e dos umbrais.” (Santo Agostinho, A cidade de Deus).
[2]
“Invocando
uma regra boa – ‘non sunt multiplicanda entia sine necessitate’ – os seguidores
da via
modernorum não multiplicaram também as
necessárias exigências do estudo filosófico. Brutalizaram e vulgarizaram.” (Gustavo
Corção, “Dois amores – duas cidades”).
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