quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A serpente e o pedal de órgão (ou o solo e o subsolo)


 
 
 
O livro do Gênesis, que, como se sabe, é divinamente inspirado mas não deve ser interpretado ao pé da letra, relata que o demônio assumiu a forma de serpente para tentar nossos primeiros pais. Quando o Espírito Santo utiliza uma figura não devemos pensar que o faz à-toa, aleatoriamente. Por que não se serviu o divino autor da imagem do gambá, já que se conta que o diabo costuma anunciar sua presença por um terrível cheiro de podridão e de enxofre?

Cristo no Evangelho, em uma das suas parábolas, diz que o reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda, que, sendo a menor das hortaliças, quando cresce se torna uma grande árvore em que os pássaros se abrigam.

O pássaro quase não toca a terra. Quando o faz, por necessidade, encosta nela tão-somente os pés, isto é, uma parte mínima do seu corpo. Quando não estão voando, as aves quase sempre estão nas árvores. Nem mesmo os seus ninhos têm contato com o solo, ficando protegidos e suspensos entre os galhos. Em grande parte do tempo, o pássaro está no ar, embora seja mais pesado que o ar. Assim também os cidadãos da cidade celeste, os filhos do reino, embora em si mesmos sejam pesados e indignos das moradas eternas, pelas asas da graça podem alcançar o céu. E os seus ninhos estão protegidos entre os ramos e a folhagem da Santa Madre Igreja.

A serpente, ao revés, é toda mundana. Arrasta-se no chão desde o começo da cabeça até o final da cauda, com todo o seu corpo. Deve ser por isto que ela não tem pés ou patas: porque quer sempre ter maior contato com o mundo. Seus ninhos também estão no solo. O horizonte da serpente e dos seus filhotes é o rasteiro, o chão, e, mesmo que não queiram, entra-lhes o pó da terra pelas narinas e pela boca. Acredito que a serpente, com os seus olhos laterais, nem sequer é capaz de olhar para o céu.

Para dizer tudo: a serpente é o animal materialista por excelência. Arrasta-se e enrosca-se em coisas palpáveis, ao passo que as aves estão suspensas em gases invisíveis, no ar. Um observador menos atento poderia dizer que as aves estão suspensas no nada. Mas isso é impossível. Sem o ar, as aves não poderiam voar.

Como a linguagem do Gênesis é figurada e Santo Agostinho diz na “Cidade de Deus” que algumas passagens da Sagrada Escritura comportam várias interpretações lícitas, estou pessoalmente convencido de que a serpente, a primeira e maior cientificista, na verdade, entregou a Eva não uma maçã, mas sim a primeira edição de “O capital”.

Depois de “Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski, é difícil compreender como o marxismo sobreviveu. Difícil, mas não impossível, pois o próprio Dostoiévski explica: “o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica”.

Em menos de uma página, talvez a mais formidável de todo o livro, Dostoiévski expõe à zombaria pública, à humilhação universal, os que pretendem construir o paraíso na terra, um palácio de cristal, com receitinhas de bolo científicas ou filosóficas. Profundo conhecedor da natureza humana, especialmente depois de ter ido ao inferno e voltado, sua crítica ao determinismo e ao cientificismo é mordaz e fatal:

“Mais ainda: então, dizeis, a própria ciência há de ensinar ao homem (embora isto seja, a meu ver, um luxo) que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. Consequentemente, basta descobrir essas leis e o homem não responderá mais pelas suas ações, e sua vida se tornará extremamente fácil. Todos os atos humanos serão calculados, está claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de tábua de logaritmos...”

Decerto, essa eloquente figura da tecla de piano ou pedal de órgão tocados pelas leis da natureza, como se o ser humano não fosse dotado de liberdade e de vontade, é uma punhalada no peito das correntes de pensamento deterministas e cientificistas, dentre as quais se insere o marxismo, que atribui toda a culpa da injustiça ao sistema, ignorando a autonomia do indivíduo.

Com uma lucidez e sarcasmo ferozes, arremata o grande autor russo:

“Realmente, eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, de repente, em meio a toda a sensatez futura, surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e zombeteira, e pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?!”

Sim, caro leitor. O homem é mais do que um pedal de órgão, do que uma tecla de piano. É ele quem toca o órgão, quem toca o piano. Mesmo diante das circunstâncias mais adversas, das situações menos prováveis, a sua decisão, a sua conduta, pode ser de todas a menos esperada, a menos prevista. A verdadeira liberdade do homem é interior, como bem compreendeu Viktor Frankl, que também esteve no inferno e saiu dele, o campo de concentração.

Mas como esperar que entendam isso cientistas, filósofos e pensadores que rastejam entre a materialidade das coisas, entorpecendo-se com a poeira do toque dos sentidos e enxergando o homem apenas como um amontoado de carne que se move? A liberdade não está na carne, meus senhores; está na alma. Quem duvida da existência da alma, como sustentará a existência da liberdade? Afinal, a alma do homem é livre até para descrer de si mesma, até para negar a verdade.
 

Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo Horizonte

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