A caridade impele-nos a socorrer os
necessitados, a dar pão a quem tem fome, a vestir o nu, a amparar o órfão e a
viúva, a visitar o enfermo e o encarcerado. Dar esmolas é um hábito salutar,
talvez não tanto atendendo a qualquer um na rua – o que pode estimular a
vadiagem e a mendicância, a exploração profissional da pobreza como meio de
vida –, mas é certo constituir uma grande obra ir em socorro dos desassistidos
tanto quanto se possa.
O mundo está cheio de mendigos. Está
cheio de nus, de desvalidos. Mas a fome mais lancinante, mais dura, mais
urgente, a escassez mais áspera, é a fome da verdade, a nudez do espírito. Se é
meritório doar o pão material, oferecer o pão da verdade é obra muito maior. O alimento
físico diminui em quantidade quando dividido. A verdade compartilhada aumenta,
como o clarão produzido pelas chamas de um fogo repartido.
Livros bons, não importa sobre o quê,
saciam a fome da alma. O mesmo fazem a boa música, a boa arte em geral. Bons
escritores e artistas matam a nossa fome. Livros maus e arte perversa envenenam
a alma. Maus escritores, maus filósofos, maus jornalistas são verdadeiros
homicidas, pois quem não nos mata a fome nos mata. A mentira é tóxica. A
verdade, um antídoto.
Boa música eleva a alma. Composições
daninhas são sofisticados instrumentos de tortura.
Não por acaso a Palavra disse: “Nem só
de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. O pão
material é insuficiente à vida. Jesus Cristo, Ele mesmo em substância, é a
Palavra que sai da boca de Deus. Ele é o Verbo, o logos. Deus criou o mundo pela Palavra. Até o pão físico foi criado
por Ela. E é também pela Palavra que o pão material transubstancia-se em pão
espiritual. Nenhuma palavra autêntica possui existência autônoma ou vida própria,
a não ser aquela única Palavra Eterna que tirou tudo do nada. Toda asserção
verdadeira – não importa de que ordem ou natureza – existe por participação naquela
única Palavra que também se chama Verdade.
A Palavra veio ao mundo para matar a
fome do homem. Diante de Deus somos todos mendigos. Por isso, Ela, a Palavra,
desceu do céu, fez-se pão, comida; vinho, bebida. Notemos, porém, que a
Eucaristia – salvo em casos excepcionais – é insuficiente para matar a fome e a
sede fisiológicas. Foi para matar a fome e sede da verdade que a Palavra se
encarnou.
Com efeito, há muitas almas raquíticas,
desnutridas, curvadas, por falta de alimentação. Muitos estão nus, despidos de
qualquer compreensão do mundo à sua volta. Há muitos órfãos, carentes de
verdadeiros mestres, da autoridade dos bons exemplos. Há muitas viúvas que não
têm a quem ensinar ou com quem dialogar. Algumas delas, inclusive, repetem as
mesmas histórias, perderam o uso da razão. Lembram-se de coisas antigas, mas
esquecem ou ignoram as novas. Há muitos doentes, feridos por inverdades, falsas
compreensões de si mesmos, dos outros, de seus deveres e alheios. Há muitos
espíritos encarcerados, aprisionados, oprimidos, escravos de pseudofilosofias, de
esquemas mentais viciosos e hábitos intelectuais obsessivos.
Passam pelas ruas milhares de espíritos
na mais completa desolação. A cena é escatológica. A indigência das gentes, descomunal.
São bichos. São desumanos. Inconscientes. Cadáveres movem-se sobre as próprias
pernas. Se pudéssemos enxergar o que vai – e o que não vai – no interior dos
homens, talvez nos espantássemos com bilhões de esqueletos andantes, de dar
pena até às mais miseráveis crianças da África.
Nós temos um dever, leitor. O dever de
dar esmola. O dever da verdade como esmola. Há indivíduos e sociedades inteiras
com fome, tão carentes, tão aflitos, tão necessitados da verdade, que não lhes
podemos negar esse socorro extremo, esse crucial alívio. Não se deve recusar
auxílio a um verdadeiro mendigo, a um real necessitado, a um desvalido. Não se
pode deixar só um suicida.
Que dizer dos pedintes bêbados, que
vivem em universos paralelos, alheios ao mundo real? A esses é preciso submeter
a uma desintoxicação completa, pois a mentira embriaga, entorpece, mata.
Tudo o que merece o nome de palavra só
pode ser verdadeiro, pois a mentira é a antipalavra, é a não-palavra, a
despalavra. Não se pergunta, com razão: “Você dá a sua palavra?” ou
simplesmente, de forma resumida, “Palavra?!”
Santo Agostinho diz que frequentemente
encontramos pessoas que querem enganar as outras. Mas dificilmente se encontra
alguém que queira ser enganado.
Às vezes, temos um estranho poder. A
vida e a morte de uma pessoa são colocadas em nossas mãos. Uma mentira pode afundar
ou matar; a verdade pode levantar e salvar.
A um condenado à morte não se pode
recusar um último pedido: a verdade sobre si mesmo.
Todos os desejos do homem podem ser
resumidos num só: a sede da verdade. O mais dramático anseio humano, o mais
premente, mais urgente, mais sofrido, é o desejo da verdade. A busca pela
verdade é uma chaga, uma ferida, um gemido.
Todos os amores humanos podem ser
resumidos num só: o amor pela verdade. Por ela, vive-se; por ela, mata-se; por
ela, morre-se. Traem-se outros amores; esse não. Quem trai o amor à verdade bem
sabe: deixou de ser homem.
Algumas poucas moedas, algumas poucas
palavras, podem conceder alívio, atenuar o incômodo, diminuir a dor, iludir o
estômago. Aquele cobertor, aquela ideia mais robusta ou verdade mais complexa,
poderá ajudar o indigente a superar o frio da noite, a defender-se da nudez.
Quem sabe aquele pouco alimento, aquelas roupas usadas, somados a outras
ofertas, não restituirão aos poucos a força, o ânimo, àquele pobre diabo,
àquele anjo caído, àquele bicho, fazendo-o levantar-se, sacudir-se e, ereto,
retilíneo, voltar a caminhar? Talvez aqueles poucos trocados, um naco de bom
senso, recusados ao indigente até ali, possam evitar-lhe a morte, quer presente,
quer futura.
Visitar com ideias frescas a mente de um
encarcerado ou doente do espírito. Ensinar uma multidão de órfãos. Dialogar com
as viúvas. Eis um vasto campo de missão, um horizonte imenso a ser explorado.
Nesse sentido é que me parece um
belíssimo apostolado, uma profunda obra de misericórdia, a de tantas pessoas que
se gastam e se desgastam, noite e dia, em sites,
blogs, jornais, livros, programas televisivos, para levar a verdade aonde
quer que dela se precise, ensinando e admoestando, oportuna e inoportunamente,
matando a fome da gente, salvando suicidas. É uma verdadeira esmola. Somos tão
pobres, meu amigo. Mendigos de verdade.
Paul Medeiros Krause
Procurador do Banco Central em Belo
Horizonte
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