Na Encíclica Caritas in Veritate o Papa Bento XVI propõe a “caritas in veritate in re sociali”, a “proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade”, o “serviço da caridade [...] na verdade”; verdade que “preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história”. Trata-se aí, e ao mesmo tempo, da “verdade da fé e da razão”; mas, também, conjuntamente, da combinação da força desses “dois âmbitos cognitivos”.
Entendendo-se a caridade em seu verdadeiro sentido, a proposição do Papa se torna plena de sentido. A dificuldade para enxergar tal sentido resulta de um entendimento distorcido do que seja caridade, como sendo no máximo filantropia, que mais exalta a quem dá do que ajuda a quem recebe. E é claro que não é disto que a Encíclica trata. Ela trata do amor de Deus presente nos diversos níveis da vida humana, na esfera cotidiana, econômica, política e jurídica.
A caridade é o amor de Deus e Deus é justo; e ser justo é dar a cada um o que é seu. Portanto, a caridade no âmbito das relações sociais é, dentre outras coisas, a prática da justiça; é a fidelidade inabalável à intenção de não tomar nem reter o que ao outro pertence.
A greve dos funcionários públicos federais pela qual passamos atualmente pode servir muito bem como base de reflexão a respeito das proposições do Santo Padre o Papa Bento XVI. Para tanto, deve-se notar o enorme prejuízo que ela tem provocado a pessoas físicas e jurídicas que são, na verdade, os que garantem aos grevistas o pagamento de seus salários, os quais se mantêm com o dinheiro de impostos.
Se, por hipótese, funcionários de empresa privada fazem greve, a sociedade em geral não deixa de ser atendida porque então os concorrentes entram em cena com empenho redobrado. Mas quem pode substituir e atender nos negócios que são monopólios do Estado, como a autorização de importação de remédios, de exportação de bens e demais coisas sem a quais a sociedade não fica adequadamente atendida?
A mesma Encíclica, para tratar da questão social, baseia-se na “doutrina social da Igreja”, de onde destaca o “princípio de subsidiariedade”. Tal princípio é isto: a instância superior em força e meios coopera, quando para isso solicitada, para a solução da dificuldade que a inferior, por si só, é incapaz de resolver. Por exemplo, se eu e minha família, sozinhos, não conseguimos solucionar a dificuldade, recorro aos vizinhos; se não se mostram suficientes, recorro à municipalidade; se a dificuldade persiste, recorro a poderes superiores até que, então, o Estado se faça necessário. Se posso resolver a dificuldade sozinho, é injusto que outros, ainda que mais fortes e bem instrumentalizados que eu, se intrometam. À luz deste princípio, não se admite que eu, minha família, os vizinhos, a municipalidade, o Estado use a coletividade para realizar fins contrários ao bem da sociedade.
É tal a maneira como nossa sociedade brasileira está organizada juridicamente que algumas distorções deste princípio parecem inevitáveis. Toda e qualquer pessoa pode aplicar-se aos estudos e tornar-se funcionário público, sem a presunção de que se encaixará em atividade compatível com sua vocação. É até provável que a maioria dos concursados se encaixará em atividade alheia à sua vocação, pois o serviço público estrutura-se principalmente sobre controle e fiscalização – pois nas coisas públicas tudo deve ser documentado e tem-se que dar satisfação de tudo. Ora, este tipo de serviço é alheio à vocação filosófica, artística e psicológica. De modo que é de se crer que o atendimento ao que é vocacional, no caso da maioria, quando se dá, dá-se fora das tarefas cotidianas obrigatórias mas, sim, como “hobby”.
Talvez a razão da desproporção entre o bem estar de que desfrutam e a indiferença que neles se nota em relação ao dever de bem atender à população resulte da elevada incidência de divergência entre a vocação e os deveres de ofício. E quanto mais seja acentuada esta divergência mais empenho a favor da greve o funcionário é capaz de demonstrar. Pois não combinando sua vocação com suas obrigações funcionais, sentirá cada dia de trabalho como injustiça, como se algo lhe estivesse sendo tirado, o tempo de que deveria desfrutar para cuidar de algo em que veja real sentido.
De onde se vê que a condição de funcionário privilegiado, com fartas garantias de salário (direto e indireto) pode ser faca de dois gumes. Por um lado, tranquiliza aos familiares (aos filhos, por exemplo), que podem ser colocados em boas escolas e encaixar-se em carreiras profissionais livremente escolhidas. Por outro lado, esta mesma condição pode criar-lhe um sério problema: ganha bem numa atividade não vocacionada, tão bem que não conseguiria repor este mesmo ganho em alguma outra atividade, compatível com sua vocação. Quanto maior o incremento de seu salário, menores as suas chances de migrar para alguma atividade vocacionada. Em resultado, compromete o humor e a saúde e progressivamente vai perdendo a capacidade de enxergar e valorizar não somente a própria vocação como a dos seus filhos e demais pessoas que dele dependem. Passará então a sonhar cada vez mais intensamente com as férias. Como elas custam a chegar, uma greve vem a calhar, mesmo que ela expresse o contrário dos valores positivos da subsidiariedade, um dos elementos centrais da doutrina social da Igreja.
Joel Nunes dos Santos, em 10 de agosto de 2012.
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