Um amigo e leitor pediu que desse minha opinião a respeito do filme “Mãos que curam”, sobre o qual ouviu ter como assunto a ideia de vocação e sacrifício.
Assisti ao filme e me parece justo dizer sobre ele que não trata tanto de vocação mas sim, de dom. A vocação está para o dom assim como o saber está para o poder. Por vocação o sujeito comunica algum saber; por dom, exercita algum poder. E no filme o personagem principal, um médico, não é alguém que conhece e impressiona por sua vocação médica, mas, pelo contrário, alguém que ignora e é “arrastado” pelo dom que possui.
Além disso, este mesmo dom, no filme, manifesta-se em pessoas que não têm nenhuma relação com a medicina, um arquiteto e uma pré-adolescente. De modo que o fato de tratar-se de dom para curar, no filme, não está necessariamente associado à medicina, mas a pessoas determinadas. E a vocação, não obstante ser algo da pessoa, não é tão alheio assim a alguma profissão ou espécie de profissão determinada.
Não obstante se possa assinalar tal diferença entre vocação e dom, a linguagem comum às vezes mistura as duas noções, ora chamando de dom o que é vocação, ora chamando de vocação o que é dom. Para o filme em questão, não faz diferença se se trata de dom apenas (como parece ser o caso) ou de vocação. Nele parece interessar qual concepção sobre Deus (ou de poder) subjaz em toda trama.
O personagem central do filme é, por acaso, um médico. A diferença entre um médico por vocação e um médico que possui, como neste filme, o dom de curar, é que no primeiro caso ele faz uso de remédios ou outros meios distintos de seu próprio corpo, para gerar saúde no paciente; usa de remédios que provocam o funcionamento ideal do corpo do paciente e este, ao reagir, desencadeia a produção no organismo do que lhe permite sarar. O médico que possui o dom de curar o faz por virtude própria, de si mesmo, do próprio corpo e não pelo despertar de alguma virtude que haja no corpo do paciente.
O que há de característico no filme, e por isso chama a atenção do telespectador, é o fato de toda cura provocada por este médico vir acompanhada de alguma perda pessoal: ao curar um paciente, seu pai, médico, homem saudável, desenvolveu repentinamente câncer; ao curar outro, sua irmã adoeceu e assim por diante. O mesmo fenômeno ocorria com os dois outros possuidores deste mesmo dom, o arquiteto e a garota pré-adolescente: sempre que curavam alguém, alguma pessoa de sua relação pessoal, parente ou não, adoecia e morria.
O médico acaba descobrindo a lógica do fenômeno: se ao exercer o dom, fazendo o bem ao paciente, algum parente seu adoecia de morte, era provável que o inverso também ocorreria, isto é, seu parente doente melhoraria ao recusar-se curar algum paciente. Foi o que aconteceu: curou um paciente e seu pai adoeceu de morte; sua irmã estava doente de morte, e então recusou intervir e curar o paciente com quem percebeu que ela estava associada, e sua irmã reestabeleceu.
Pergunta-se: que visão de Deus é necessária para sustentar tal ponto de vista? Se o bem (a cura) vem sempre acompanhado de um mal; e se um mal (a doença e a morte) vem sempre acompanhado de um bem (a cura), que poder (ou concepção respeito de Deus) é capaz disso? A resposta é: um deus (com “d” minúsculo) pré-cristão, um deus antigo – na verdade, “deus”, não, mas “deuses”: um do bem (Mazda) e outro do mal (Arimã). Sempre que se dá o bem, o mal necessariamente o acompanha: Mazda nunca se livra de Arimã e vice-versa. E esta é a concepção religiosa dos persas (a Pérsia é o país hoje conhecido como Irã), a religião de Zoroastro, que ensinava que dois deuses criaram todas as coisas que existem: o do bem, as coisas espirituais; o do mal, as coisas materiais.
Esta concepção foi retomada no séc. XX pelo psicólogo suíço C. Gustav Jung, que acreditava que tudo quanto existe possui uma “sombra”, de modo que, segundo ele, o Deus dos cristãos possui uma, a quem dão o nome de diabo. Para ele, o diabo é Deus com sinal invertido: se Deus é o bem, é o mais, o diabo é o mal, é o menos.
Nesta concepção, a moral fica embaralhada, pois se o bem (Mazda) está sempre acompanhado do mal (Arimã), então quem queira fazer o bem desencadeará o mal e quem fizer o mal estará na verdade provocando o bem. Por isso não era alheio a esta concepção o sacrifício humano: se uma criança é sacrificada, por exemplo, na verdade não se está praticando nenhum mal, mas provocando a ocorrência de algum bem.
Observe-se como, nos dias de hoje, algumas pessoas são convictas de que o aborto é um direito, portanto, um bem. Tais pessoas – refiro-me às que sinceramente acreditam nisto – possuem um sentir correspondente a uma época e lugar pré-cristão. São pessoas onde nem a razão natural elevou-se ao que dela se espera e nem a graça da fé penetrou suficientemente na alma, semelhante ao ocorrido com os alemães na II Guerra Mundial.
O filme de que tratamos parece trazer, em sua base, esta mesma concepção de criação, este mesmo espírito zoroastrino. Daí não ser de espantar qu eele não faça referência explícita e direta ao bem ou ao mal. Numa palavra, assiste-se ao filme e só pensamos de maneira objetiva no bem e no mal porque somos cristãos, mas não porque o filme o seja ou o sugira.
O filme é obra contrária à verdade antes de ser contrária à fé que a Igreja ensina. Contrária à verdade porque baseia-se no suposto de que o bem sempre se acompanha de algum mal, como se o bem e o mal fossem como irmãos siameses, fossem vetores de força igual porém de sinais contrários. E isto não é verdade: o bem não necessita do mal e pode existir sem ele. O mal, sim, depende do bem para existir, pois ele é deficiência no bem. Contrária à fé da Igreja porque por ela aprendemos que em Deus não existe qualquer mescla de imperfeição, portanto, de mal, o que está afirmado nas palavras do Credo: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, das coisas invisíveis e visíveis.” Ou seja, um só e único Deus criou todas as coisas, o mal sendo portanto coisa da criatura e não do Criador.
Joel Nunes dos Santos, em 13 de julho de 2012.
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