No segundo livro da Irmã Lúcia (“Apelos da Mensagem de Fátima”), ela comenta (p. 28) o episódio da queda do homem, citando a passagem constante de Gn 2, 16-17; 3, 6-21, onde consta o trecho “Comerás o pão com o suor do teu rosto”. Sobre este trecho diz, que “...depois de os ter vestido, Deus expulsa-os do jardim, não sem antes lhes ter imposto a penitência do trabalho” (p. 29).
A leitura dos seus comentários a respeito do casal que pôs o homem num enorme buraco, do qual somente Jesus, Deus Verdadeiro e Homem Verdadeiro, nos tirou, fez-me recordar o que escrevi em artigo anterior, “A vocação ordena ao (“dirige o homem” para o) trabalho; pelo trabalho o homem obtém alimento; com o alimento, o homem sustenta a vida material”(1) , quando levei em conta o impacto da vocação sobre a vida natural do homem. Criatura espiritual, Irmã Lúcia destaca a dimensão espiritual do trabalho, fazendo considerações que desencadeiam na alma do leitor reflexões profundas e de grande valia. Exponho aqui um pouco das minhas.
Quando criança ainda, em Fátima, ela, mais Francisco e Jacinta, ouviram do anjo de Portugal a exortação “Penitência, penitência, penitência”, o que fez pleno sentido para as crianças que, a partir de então, passaram a privar-se voluntariamente do que lhes fazia o gosto, oferecendo o sofrimento resultante ao Coração Misericordioso de Nosso Senhor. E assim acumulavam enorme tesouro para a vida no Céu, ainda que o fizessem não por causa do que poderiam ganhar com isso, mas porque entenderam muito bem que muitas almas se perdem porque não há quem por elas interceda.
A penitência é ato voluntário, e é tão diferente do sofrimento sem sentido quanto diferem a fome do jejum. Olhando-se uma e outra pela perspectiva natural, física, são a privação do organismo dos nutrientes de que ele necessita. Porém, aguçando mais o olhar nota-se de imediato que a fome debilita a vontade, enquanto o jejum a fortalece. O sofrimento sem sentido leva o homem a ofender a Deus, enquanto que a penitência a louvá-lo, adorando-O com a própria vida, pois ela é a expressão mesma da imitação de Cristo.
Como seria muitíssimo difícil levar a maioria dos homens à compreensão de todas essas coisas, Deus em sua Providência cumulou a espécie humana da graça de praticar o amor ao próximo, ainda que de maneira involuntária; e ainda aumentou no coração do homem o desejo de isto fazer ao dispor que por mais bruto e refratário à obediência seja a pessoa, ela se sente mais senhora de si fazendo o que prossegue sua vocação.
Esta verdade somos todos capazes de perceber quando a dificuldade material cai sobre os ombros e parece não haver ninguém capaz de nos ajudar, e então nos vemos sozinhos e obrigados a “produzir” algo que nos tire da triste situação. É quando então, por ação da graça de Deus, que é pródiga até com os que dEle se afastam, que a pessoa percebe que lhe resta, sim, algo a oferecer e pelo que as demais pessoas se interessariam. Nessas horas a pessoa consegue perceber como detalhe valioso de sua personalidade o que deixara caído num canto da sua vida: descobre os desenhos que fez, as coisas que escreveu, os utensílios que consertou, a habilidade de sapateiro que poderá usar na confecção de coleiras e correias de contenção de animais e assim por diante. Todas aquelas “inutilidades”, habilidades desenvolvidas no curso espontâneo da vida, de repente, aparecem sob uma nova e valiosa luz. Porque é como se Deus deixasse no coração do homem um “gatilho” que o fizesse lembrar da penitência que está obrigado a fazer – penitência cujo nome é trabalho, a ação humana de fazer o que é imposto pela necessidade de terceiros.
Esses momentos da vida, de dificuldades, quando parece não haver nenhuma saída, são pródigos em ensinamentos. Eles podem nos ensinar a ver a força da vocação que Deus nos deu, vocação esta que nos faz encontrar um tipo de solução para nossas dificuldades que combina perfeitamente com aquilo que de fato podemos fazer.
As situações de dificuldades são quando somos obrigados a fazer alguma coisa para dar um jeito na situação. Nelas, agimos com eficiência desde que alicercemos o que fazemos na própria vocação.
À vista dessas reflexões, os comentários de Irmã Lúcia sobre a citada passagem, identificando a imposição de Deus ao trabalho como penitência, adquire luz que faz o coração vibrar de alegria. Porque se no trabalho fazemos o que interessa ao outro, nesse momento deixamos de lado o egoísmo e tomamos sobre o próprio ombro a nossa cruz. Claro que os que fazem tudo isso gratuitamente, tão somente para agradar a Deus, crescem mais na fé e na esperança. Mas os que fazem isso por causa do peso das circunstâncias, adquirem algum mérito, mérito próprio de quem obedece a Deus e a algum de seus mandamentos. No caso, o mandamento de fazer penitência, isto é, trabalhar.
(1) “Vocação e Trabalho”, Domingo, 23 de setembro de 2011.
Joel Nunes dos Santos, em 12 de novembro de 2011.
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