domingo, 23 de outubro de 2011

Vocação e Trabalho

A vocação ordena ao (“dirige o homem” para o) trabalho; pelo trabalho o homem obtém alimento; com o alimento, o homem sustenta a vida material. Por isso ocorre que, no mais das vezes, a maioria escolhe o estômago, o “bolso” e não a Deus e Sua graça. Como quando Jesus expulsou demônios e permitiu que eles se alojassem numa vara (conjunto de porcos) que se lançaram no precipício. A população local expulsou-O porque Ele lhes dava prejuízo, fazia morrer sua fonte de renda.

“Trabalho” não é o mesmo que “profissão”, pois esta surge e desaparece e significa a reunião de idéias e meios com o fim de solucionar problemas específicos. O ofício médico tem como fim a geração da saúde; a advocacia a preservação da propriedade do cliente e assim por diante. A profissão, portanto, diz respeito à organização coletiva do esforço combinado de grupos de pessoas.

O trabalho, por outro lado, é o esforço individual que cada pessoa aplica no desempenho de alguma tarefa, esclarecimento que corrige um engano muito comum: quando pergunto ao orientando “O que seus parentes fazem?...” é frequente a errônea resposta “... Minha mãe não trabalha...”. Tal tipo de resposta pode (e deve) ser substituída pela expressão “embora ela não tenha uma profissão, ela trabalha sim, cozinhando, administrando a casa e as finanças, etc.”. Porque não é razoável supor que esta ou aquela pessoa não faça nenhum tipo de esforço. Claro que faz, e este esforço chama-se “trabalho”, o qual pode ou não receber recompensa em dinheiro.

Pois bem, se toda e qualquer pessoa (salvo exceções que nem contam para o que aqui está sendo tratado) faz algum tipo de esforço, este esforço pode ou não ser compatível com a vocação. Este esforço é espontâneo quando criança, e a sua observação demonstra a presença de algum tipo de propósito que o tempo vai ajudando a clarear, quando então se diz que ela possui vocação filosófica, científica, artística ou interpersonalística.

No caso dos animais, o esforço é sempre repetido e os meios utilizados são sempre os mesmos. Quem se dê à observação de qualquer animal nota que uma racionalidade conduz suas ações: a aranha quando tece, os peixes quando se reúnem em bando e rapidamente mudam a figura da mancha do conjunto para assustarem o predador, os felinos quando astutamente se deslocam sem fazer barulho em terreno cheio de folhas secas, o camaleão quando muda de cor e se torna pouco perceptível, e assim por diante. Mas a racionalidade presente nesses esquemas de esforços não pertence a essas criaturas – neles está impressa, como “defaults”, como automatismo puramente instintivo. Nenhuma de tais criaturas possui autonomia para deixar de fazer o que faz ou mesmo deixar de usar dos meios que sempre usa.

No caso do homem é diferente: ainda que o propósito do esforço possa ser sempre o mesmo (isto é, compatível com a intencionalidade filosófica, científica, artística, etc.), as diferentes aparências que assume é justamente porque a vontade do homem é livre, sua inteligência possui autonomia e permite infindáveis formas de adaptação. Por exemplo, mesmo em esportes agressivos surge um ou outro atleta com tamanho senso estético (fruto da vocação artística) que consegue distrair o público da natural repugnância que acomete o coração à vista do enfrentamento físico entre pessoas. Porque, por exemplo, “sua maneira de lutar é muito bonita”.

Quanto maior a quantidade de adaptação o indivíduo tenha de fazer para realizar o propósito que desencadeia seu natural desejo de se esforçar por algo, mais dipersivo se torna seu espírito e, em resultado, mais infeliz ele vai se tornando. Porque, como explica Santo Tomás de Aquino, “a natureza não provoca desejos vãos”. A dispersão do espírito é uma contrariedade a esta lei, pois significa esforço que conduz a coisas imprecisas. É como o caso do indivíduo dotado de elevado talento estético mas que se torna bancário – banco é uma empresa que somente valoriza a estética no seu grau mínimo, e desde que isto não atrapalhe seus negócios. Tal indivíduo em tal instituição será solicitado a maior parte do tempo para atividades alheias à estética, o contrário do que aconteceria caso trabalhasse, por exemplo, numa galeria de arte, numa empresa de arquitetura, num estúdio de gravação, etc.

O contrário vale: quanto antes a criança for ajudada a realizar os objetivos pretendidos espontaneamente por seus esforços, mais chance ela terá, quando adulta, de ter um espírito capaz de concentrar-se no bem, no justo e no verdadeiro. E quanto mais ela for capaz de fazer isso, maiores serão as chances de ela reconhecer a verdade tão logo ela se lhe apresente. O que permite supor que o desenvolvimento moral e cognitivo de Pilatos seguiu a linha do erro: diante da Verdade, ironizou perguntando “O que é a verdade?”, sinal evidente de que levou vida dispersiva, gasta na perseguição de propósitos cuja realização não dependia dele, como é próprio das pessoas ávidas do poder e que vivem se esforçando para agradar a César e não a Deus.

Jesus sempre usou de divina paciência para esclarecer este tipo de coisa. Como quando estava na casa de Maria e Marta, esta se entregando aos estafantes esforços de agradar Aquele a quem ela certamente amava mais do que a si mesma, o próprio Jesus. Não percebia que, na presença física de Jesus, não era preciso usar de meios que O simbolizassem, como ensinou que nós, que não O vemos, fizéssemos: Toda vez que alimentarem a quem tem fome, acudirem ao miserável, ao doente, etc., é a mim que estão alimentando e acudindo... Ora, Ele estava presente na casa dela e o certo era fazer como Maria: ajoelhar-se a Seus pés, cuidando primeiro das coisas de Deus, contemplando-O e a Ele se entregando.

O hábito da vocação é encurtador dos caminhos que conduzem da idéia à sua boa e plena realização. A criança que é ajudada a praticá-lo fica livre dos desvios do consumismo, da má consciência, do sentimento de culpa por amar o bem e a verdade ainda que todos os seus coleguinhas a reprovem por causa disso.

O casamento da vocação com o trabalho é o resultado de uma excelente pedagogia, capaz de facilitar a ação da graça sobre a natureza perfectível do homem. Não observamos isso no efeito da santidade de José Maria Escrivá? Os que lhe são devotos manifestam um senso de disciplina, uma tamanha ausência de dispersão de espírito que irradiam firmeza, paz e segurança a quantos com eles tenham a graça de terem por amigos e conviverem. E por isso são tão mal falados, pois dão a ver participarem da paz que Jesus dá, a qual não se confunde com a paz que o mundo oferece (mas não dá, óbvio).

Joel Nunes dos Santos, em 22 de outubro de 2011.

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