Ambas as atividades, a vocacionada e a não-vocacionada, estão sujeitas a reveses. Contudo, para sua superação, a vantagem está indiscutivelmente ao lado da primeira. O que se compreende levando-se em conta o fato de a vocação ser o que confere ao homem aptidão para manifestar, de maneira constante, um certo e permanente ótimo no desempenho de tarefas.
O substantivo “talento” significa “habilidade adquirida para fazer bem algo”. A pessoa pode desenhar, discursar ou fazer qualquer outra coisa bem porque treinou para fazê-lo, uma vez que o homem é criatura racional, dotado de intelecto livre e vontade; portanto, capaz de colocar-se imaginativamente pelas mais diferentes perspectivas. Suponha, por exemplo, um homem bom, honesto, íntegro, etc., que é detetive. Para ele chegar ao êxito de identificar o autor do crime, precisa colocar-se, imaginativamente, pela perspectiva do criminoso. Para fazer isso bem, precisa repetir o procedimento por dias, semanas, meses, às vezes por anos. Noutras palavras, ele precisa “treinar” pensar como criminoso. Tão logo tenha êxito, interrompe o “treinamento”, desligando-se psicologicamente do personagem que o acompanhou por tanto tempo. E assim com cada um de nós: a princípio, podemos treinar fazer isso ou aquilo, e fazer tão bem que fica parecendo coisa vocacionada, como aquelas coisas que fazemos para solucionar dificuldades econômicas que podem durar décadas. Uma vez resolvidas, é muito provável o abandono do assunto. Porém, quando se trata de talento arraigado na vocação, ainda que desapareça o estado de necessidade, o homem é capaz de manter-se no procedimento até o fim de sua vida, sem que isso o adoeça. Muito pelo contrário: esta é a maneira mais saudável de se evitar o esclerosamento da mente na idade avançada. Coisa esta que verifiquei há 3 dias: viajei ao lado de uma senhora de 94 anos, com quem conversei por aproximadamente quatro horas seguidas. Ela disse que costuma cantar nas reuniões de família, que antigamente costurava muito e atualmente ainda costura, mas pouco. 94 anos!...
Isto é assim porque naquilo que tem relação com a vocação, imita, na vida natural, o ótimo humano que Jesus explicou à samaritana dizendo: “Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja.” (Jo 4, 23) Quando, na vida natural, o homem age com unidade do intelecto, vontade e afetividade, a ação se reveste de sentido pleno e é justamente à causa deste tipo de agir próprio do homem, que se dá o nome de vocação.
Dissecando esta condição – o homem agindo na vida natural vocacionadamente – o que observamos? Observamos que ele está inteira e totalmente envolvido com a tarefa: ele enxerga o conjunto e discrimina cada detalhe; escolhe os meios mais adequados de realizá-la, e gosta de fazer isso, a ponto de apagar da mente a percepção da passagem do tempo, assim como se ausentam de seu espírito considerações de ordem econômica. A atividade, aí, assume a feição de arte, cuja característica é nada ser deixado de fora e tudo ser encaixado no conjunto.
Na atividade não-vocacionada, não se dá esta unidade de toda a personalidade; não se dá a imitação daquele ótimo que Jesus explicou e que, somente por meio dEle passou a ser possível o homem realizar.
Ora, quando na vida profissional ocorre algum revés, o vocacionado apenas “muda de praia”, isto é, se esforça para encontrar outro lugar e pessoas que valorizem o que ele é apto a oferecer. A dificuldade da situação não o obriga a manter-se “treinando”, “atualizando-se” – ele já faz isso naturalmente porque sua alma espontaneamente se alimenta dos saberes necessários àquele tipo de tarefa. O contrário do que se dá com o não-vocacionado, que habitualmente só pensa nos detalhes que a tarefa exige quando está próximo de praticá-la ou de se candidatar a alguma nova colocação profissional. Estes ficam sonhando quando não mais precisará desempenhá-la, o contrário do que se dá com o vocacionado: para este, a dificuldade surgida por causa do revés não diz respeito ao desempenho de tarefas, mas apenas às dificuldades exteriores do comportamento, que se superam com pouco treinamento, como a arte de ser simpático, falar compassadamente. Porque ao falar da tarefa seu olho já brilha naturalmente, encantando o entrevistador/empregador.
Por isso, mesmo que aparentemente possa parecer perda de tempo dedicar-se a algo imprático (porque desligado da idéia de valor econômico), o que é característica do interesse vocacionado, nos momentos difíceis da vida, quando surgem os reveses, vemos o talento vocacionado exuberar. Assim, em situação como a que o Japão vive atualmente, parece muito óbvio que serão úteis verdadeiramente os indivíduos, homens e mulheres, de fato vocacionados. Para superar os efeitos dos cataclismos que lá ocorreram e vêm ocorrendo, os diplomas e os títulos diversos são inúteis, porque a natureza não reconhece o valor daquilo que só faz sentido na sociedade dos homens. O talento verdadeiro é aquele cujo lastro está na vocação; é dele que se pode fazer uso a vida inteira; é o seu cultivo que gera idosos joviais, bem dispostos, autônomos no grau máximo que a condição idosa permite. Mas mesmo ela, a vocação, é como um título de crédito (como um cheque): por maior que seja a importância nele consignada, só é possível dizer-se dono do dinheiro aquele que vai ao banco e o resgata. Só cultiva a vocação de maneira adequada quando a ela se associa hábitos adequados, o que vale tanto para a vida natural quanto para a espiritual.
É, pois, nos momentos difíceis da vida que a vocação mostra todo o seu valor. Pois é ela que está na raiz da solução da dificuldade que surgiu na vida do homem e Deus explicou como resolvê-la: “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto” (Gn 3, 19). Ao mesmo tempo que Deus deu a pena, vocacionou o homem para bem haver-se com as dificuldades que ela necessariamente comporta.
Joel Nunes dos Santos, 17 de setembro de 2011.
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