A organização da vida estruturada sobre vocação elimina ou restringe brutalmente a possibilidade da queda da autoestima, um sintomático problema atual que tem levado muitos jovens a se perderem. Não raro acontece de rejeitarem a si próprios quando experimentam frustrações afetivas, como fim de namoro. Não passa um mês sem que se leia nos jornais alguma notícia deprimente a respeito dessa questão.
Um dos fortes elementos que contribuem para este tipo de ocorrência é a educação estruturada na desobediência do primeiro mandamento que Deus deu ao homem depois da queda, “ganhar o pão com o suor do rosto”. Pois obedecer a este mandamento é semelhante a exercitar a caridade, uma vez que nele está presumido o trabalho humano, o qual sempre se dá em benefício do próximo. Em todo trabalho o homem afana-se com muito mais coisas do que ele pessoalmente necessita para sobreviver e viver bem, o que dá a ver que até no momento em que Deus aplica a justiça, enche o procedimento de misericórdia. Mesmo os que trabalham de má vontade praticam ação de justiça, pois dão ao próximo (que ignoram quem é e nem sequer amam) o que a eles pertencem. Como já disse para um amigo, que é mecânico: "Você passa a maior parte das horas do dia cuidando de problemas que nunca terá!”, uma vez que o preço dos carros de que cuida estão muitíssimo acima do que conseguiria poupar ao longo de anos.
Para que a pessoa aja com mais eficiência, com mais justiça (cuidando honestamente daquilo que ao outro pertence), convém que atue escorado no que lhe seja vocacional. E aí encontrará também um fortíssimo antídoto contra a queda da autoestima, mesmo nos momentos em que a alma for abalada por forte pressão emocional. Justamente o que aconteceu com um jovem a quem sua mãe pediu que eu orientasse.
A mãe desse jovem contou-me que ele namorava havia algum tempo. Era apaixonadíssimo por ela, que um dia resolveu terminar o namoro. Ele deprimiu e isso logo se refletiu no seu rendimento escolar. De aluno excelente que sempre fora, passou a tirar notas baixas mesmo em matérias que eram o seu forte. Sempre estimado pelo diretor da escola (americana, bilingue), foi chamado pela primeira vez à sua sala por questão de disciplina. O diretor perguntou-lhe o que acontecia e ele respondeu, com a pureza de alma que lhe era peculiar: “Minha vida está um trapo. A garota, que é a pessoa de quem mais gosto na vida, depois de meus pais, terminou comigo. Agora não consigo ver graça em nada, não sinto prazer com nada, não tenho interesse por nada. É isso que está acontecendo comigo e não tenho a menor idéia de como mudar isso!” O diretor, que já gostava dele, contou que seu gosto aumentou ao ver a sua sinceridade.
Chegado a situação a este ponto, fui convidado pela mãe a ajuda-lo, o que fiz, levando em conta o seguinte: a vocação familiar é científico-artística, própria de pessoas em primeiro lugar práticas e que não deixam de embelezar o que fazem. Conseguem casar funcionalidade com beleza.
O jovem, desde criança, sempre foi o terror das cozinheiras. Quando estava em casa e a cozinheira ocupada com preparar alguma refeição, lá ia ele para a cozinha interferir no que ela fazia: “Não coloque alho comum, mas alho poró! O alho comum vai tirar o sabor das outras coisas!...” dizia, para desassossego da funcionária. Com mais idade, foi impedido de levar adiante seus pendores gastronômicos, pois era inconcebível para seu pai, na ocasião (opinião que mais tarde mudou), que ele ficasse “lavando pratos em restaurante” – condição inicial definida pelo “chef” francês, que propôs instruí-lo nesses assuntos. Resignou-se, como é próprio de jovem que respeita e ama aos pais e confia nos seus juízos, aceitando viver vida com as horas do dia tomadas por intermináveis compromissos: aula de inglês, natação, academia... Época essa em que conheceu a namorada, por quem se apaixonou e por quem foi rejeitado e fez sua vida virar um trapo.
Perguntei-lhe por que achava que a garota terminou com ele. Respondeu que possivelmente porque ficava sempre ligando para ela, cumulando-a de atenções e coisas do gênero. Não lhe dava tempo para respirar. Propus outra hipótese: rejeitou-o porque não o conheceu fazendo aquilo no que ele era melhor. Com procedimento socrático, ajudei-o a repertorizar tudo que fazia no dia-a-dia, desde o momento em que acordava até quando ia dormir. Em toda e cada coisa que fazia (estudo do inglês, natação, trabalhos escolares, etc.), não obstante estivesse acima da média, nenhuma delas lhe permitia sentir-se “insubstituível”. Somente numa delas, de que pouco cuidava: a arte da cozinha, arte esta cujo componente é mais ciência do que outra coisa – caso contrário o número de pessoas que passariam mal após comer seria enorme. Sugeri que a ela se dedicasse, que então sua vida mudaria e, após isso, quem dele gostasse, dificilmente quereria “abrir mão dele”, como fez sua ex-namorada.
Foi o que passou a fazer. Encaixou o estudo da culinária no esquema de seus dias, tendo de deslocar-se por grandes distâncias, de ônibus, o que o obrigava a dormir tarde e a acordar mais cedo do que antes. Deu-se tão bem nisso que seus pais, ainda que passando por dificuldades financeiras, dispuseram-se enviá-lo (a seu pedido) para o exterior para formar-se numa das duas mais reputadas escolas de culinária da atualidade, onde se formou.
A penúltima notícia que dele tive foi a de ter sido convidado por Ronnie Von para conceder-lhe entrevista, na condição de “chef-de-cuisine”. A última, que já se instalou profissionalmente bem.
É provável que os anos de maturidade o conduzam à compreensão de que uma das graças que Deus lhe deu foi fazê-lo ser reprovado pela garota de que tanto gostava mas que, infelizmente, não era capaz de enxerga-lo pelo que nele havia de vocacional. Caso enxergasse, é pouco provável que romperia o namoro. Neste caso, hoje em dia estaria ao lado de alguém com uma autoestima nem alta nem baixa, mas simplesmente justa: porque quando a pessoa organiza sua vida em torno à vocação, ela exercita um pouco da primeira e fundamental virtude, que é a da “humildade...própria dos que veem a Deus. Se o auge desta virtude é ver a Deus, então o início é ver a verdade das coisas criadas, aí incluído primeiro e principalmente a si mesmo. E não há autoestima mais justa do que a derivada deste tipo de visão.
Joel Nunes dos Santos, em 10 de setembro de 2011
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