domingo, 14 de agosto de 2011

A Vocação Missionária de Santa Teresinha do Menino Jesus

(As citações das Mensagens são retiradas do livro “Bento XVI e os Jovens”, de Pe. Marco Antonio Pinheiros Arêas (org.), Ed. Cultor de Livros, São Paulo, 2010)

“O que constitui a nossa fé não é primariamente aquilo que fazemos, mas o que recebemos” (cf. Lumen gentium, op. cit., p. 247). E se a pessoa recebe, ela pode dar, porque ninguém dá o que não tem. Se o que faz é com a força somente da vocação natural, o resultado é um; se a esta vocação soma-se o carisma da vocação sobrenatural, então o resultado é muito outro. Isto é visível em Santa Teresinha do Menino Jesus, em que a vocação artística se encontra misturada com a vocação interpersonalística, que a fazia amar, acima de tudo, contribuir efetivamente para a salvação de almas, como declara expressamente em sua “História de uma alma”.

Na Mensagem para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), Lorenzago, 20 de julho de 2007, o Papa Bento XVI identifica o aspecto interpersonalístico de sua vocação. Escreveu ele: “Não tenhais medo de ser santos missionários, como São Francisco Xavier, que percorreu o Extremo Oriente para anunciar a Boa Nova até ao extremo das suas forças, como Santa Teresa do Menino Jesus, que foi missionária, contudo sem jamais ter deixado o Carmelo: ambos são “Padroeiros das Missões”. (op. cit., p. 260) Vida missionária e reclusão não são coisas possíveis ao homem somente escorado em sua vocação natural; mas é algo que exige um acréscimo de virtude cuja força procede diretamente de Deus e confere eficácia material (e não somente psicológica) à ação. Coisas diferentes como o efeito do conselho de um amigo e a absolvição na confissão. No conselho, o coração do ouvinte fica tranqüilo por algum tempo. Mas na confissão, some a mancha do pecado e a ferida desaparece. Num caso, o efeito é psicológico; no outro, é ontológico, isto é, diz respeito a todo o ser da pessoa.

A Santa Flor fala da meta espiritual que a atrai à vida no Carmelo. Diz ela: “Vim para salvar as almas, e principalmente para rezar pelos sacerdotes”. (Hist. uma alma, p. 167). De modo que a forma de sua vocação é artística e o conteúdo interpersonalístico.

À luz da fé católica é que tal coisa se torna visível. E que coisa é esta? É a “comunhão dos santos”, a efetiva organicidade do existir católico. E só fazendo parte desta organicidade é possível ver desenvolver no coração o “sentir católico”, que cria morada no coração dos humildes mas repugna aos soberbos, ainda que possuidores de muita cultura acadêmica ou outra. O sentir católico, fruto da comunhão dos santos, é o que torna amáveis, no coração do fiel, o Papa e a Igreja.

Creio que cada pessoa desenvolva, ao longo da própria vida, uma maneira confortável de representar-se os efeitos da graça, tão visíveis nos santos. A minha é através da analogia das coisas naturais, que impactam minha imaginação e assumem a forma de imagens à qual aplico o esforço de descrever. Provavelmente isto é assim comigo devido ao componente artístico de minha vocação. Por certo que alguém dotado de vocação filosófica, como o Papa Bento XVI, consegue expor sua compreensão das coisas da graça com mais leveza e elegância, pois consegue encontrar a palavra exata que remete ao sentido que procura. Eu, diferentemente, parece que vejo uma imagem, uma cena, e então tento elevá-la ao seu sentido mais elevado, superior, até conseguir ver a ação da graça.

Refletindo no mistério que acompanha a vocação da Santa Flor, de ser missionária ao mesmo tempo que vivendo vida reclusa, a cena que me surgiu foi a do artista músico. Vi-o exercendo o seu ofício, que assim descrevo.

Eis o que faz o músico. Na vida natural, os estados de alma acompanham o curso natural da vida, o que é mais claramente perceptível por quem vive no campo. Lá, na parte da manhã, sob o nascer do sol, toda a vida começa a movimentar-se e se ouvem cantos de pássaros, mugidos de vacas, os gritos das crianças. O agricultor e o que cuida do gado vão para o campo e trabalham até que chega a hora do almoço, quando então interrompem o trabalho e cedem à modorra do início da tarde. Após este momento, voltam ao trabalho que termina ao entardecer. Voltam para casa e parece que em nada mais pensam senão em lá chegar, tomar alguma bebida relaxante e jantar junto com os que lá os esperam, as crianças querendo brincar, ouvir histórias, rezar... Chega a hora de ir para a cama, dormir e sonhar.

Para cada um desses momentos da vida natural há um tipo correspondente de estado de alma. O amanhecer trás consigo a força do entusiasmo, pois encontra o corpo e alma descansados. Passadas algumas horas, o entusiasmo é substituído pelo sentimento que acompanha o cansaço do corpo, quando ele reivindica a refeição do almoço. Passadas mais horas, surge a nostalgia própria de quem entendeu que chegou o momento de ir para casa ao final de um dia de trabalho e, no trajeto, imagina com tanta força o prazer da chegada a casa que parece estar sonhando acordado, pois em tal sonho os personagens só falam de coisas agradáveis. Depois, saciado física, psicológica e espiritualmente, nada mais agradável que deitar, dormir e sonhar, após meditar em quantas maravilhas Deus espalhou no dia que acaba de findar.

E cadê o músico, que foi deixado quieto no início da descrição do dia e os sentimentos que habitam suas horas? Ele está lá o tempo todo, observando tais sentimentos e criando músicas que o farão cada um daqueles momentos retornarem, porém sem coincidirem com as horas do dia em que naturalmente se manifestam. Sua música criará nostalgia no coração dos que acabaram de acordar, entusiasmo nos que voltam para casa após um dia inteiro de trabalho, e assim por diante. Ele, o músico, faz o coração comportar-se aqui e agora como se a hora do dia fosse diferente da que efetivamente é. Não espanta que o coração do rei Saul acalmasse quando Davi lhe fazia ouvir sua harpa. Davi lhe dava boas horas do dia, aquelas mesmas horas que a natureza e suas erradas decisões recusavam dar a ele.

Assim é na vida natural: o músico, com a força da inteligência que sua vocação lhe confere, consegue provocar efeitos terapêuticos (curas ou distrações momentâneas das dores da alma). Mas Deus faz muito mais do que isso: Ele infunde a ação do Espírito Santo, a força da graça e faz que se repita a cada momento do dia em que nisto nos empenhamos, o que rezamos com a Igreja todo dia: “Enviai o vosso Espírito e tudo será criado, e renovareis a face da Terra...”. (Oração do Espírito Santo)

À luz dessa imagem, onde o músico é o protagonista, minha imaginação encontra meio confortável de elevar-se à compreensão, ainda que pequena, da parte da vocação da Santa Flor, que o Papa Bento XVI, numa simples frase, apontou com certeira perspicácia. A parte interpersonalística, que se manifesta com a beleza da arte, com a beleza da flor, forma perfeitamente combinante com sua vocação natural.

Joel Nunes dos Santos, 13 de agosto de 2011.

Um comentário:

  1. Prezado Joel, gostaria de entender melhor as caracteristicas das vocaçoes naturais. Há algum texto sobre o assunto?

    Muito obrigada

    Catarina

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