domingo, 28 de agosto de 2011

A vocação e a amizade


Neste artigo trato mais da amizade do que da vocação. Mas seja de que tipo for a amizade (o que se esclarecerá a seguir), é imprescindível o esforço de cada pessoa no desenvolvimento dos talentos que realmente combinem com sua vocação. Pois é em resultado do desenvolvimento adequado da vocação que a pessoa se eleva à condição de poder desfrutar das boas e saudáveis amizades sem as quais é muito difícil pensar em vida feliz e com sentido.

No livro VIII da Ética a Nicômaco, Aristóteles trata da amizade; esclarece que está sujeita às seguintes condições:
a) é de três tipos: por causa do bem honesto, do bem útil ou do bem deleitável;
b) não pode ter por objeto ente inanimado. Por exemplo, não é possível ser amigo do carro, do vinho, do ouro, da casa, etc.;
c) precisa ser recíproca. Assim, se sou bom com alguém e esta pessoa não corresponde, não posso dizer-me seu amigo, mas que sou seu benfeitor;
d) não pode ser amor escondido, porque o amor de amizade é amor explícito, manifesto, declarado. Sendo oculto, é amor de benevolência e não de amizade.

Assim pensando, chegou à definição de amizade: “por ela algumas pessoas se queiram bem mutuamente, e que isto não lhes seja oculto, e que seja por causa do bem [honesto], do deleitável, ou do útil.”

Na amizade útil e deleitável não se ama a pessoa simplesmente, por causa da expectativa do bem desta pessoa, mas na medida em que dela se recebe algum bem. Na deleitável, não se ama a pessoa porque ela é virtuosa e suas brincadeiras e comportamentos são sadios, mas porque o convívio com ela provoca prazer sensível (prazer provocado por via de algum sentido, da vista, da audição, do olfato, do paladar ou do tato). Na útil, porque a associação com a pessoa interessa à solução de alguma dificuldade (social, profissional, econômica) ou realização de algum plano para cuja consecução requerem-se habilidades ou recursos que a própria pessoa não possui. A amizade por deleitação visa a um resultado que se dá no presente, enquanto que a por utilidade, a um resultado a dar-se no futuro não muito remoto.

A amizade por causa do bem honesto é dita a verdadeira amizade, pois se baseia em verdadeira virtude, presente em ambos os amigos. Sobre esta amizade, o Dr. Ives Gandra Martins Filho (filho do grande jurista de mesmo nome), em seu livro “Ética e Ficção – de Aristóteles a Tolkien” (Ed. Elsevier, 2010, p. 217), diz o que a faz nascer é a “comunhão dos mesmos valores intelectuais e morais e o desejo de difundir a fé que se possui”.

Esclareça-se que virtude é o que atualmente é expresso pela denominação “força de caráter”, aquela força interior que se desenvolve a partir do hábito de bem direcionar os instintos agressivos e de posse; do hábito de refletir ou bem aconselhar-se antes de agir; e de esforçar-se por praticar, em todas as circunstâncias, ações justas, não retendo nem tomando o que ao outro pertence.

Alguns indivíduos são mais inclinados a uma ou outra virtude, necessitando esforçar-se mais para adquirir aquelas às quais sua natureza (seu temperamento, isto é, o conjunto de características herdadas) não inclina espontaneamente. Assim, há os que experimentam facilidade natural para serem moderados na mesa e nos assuntos venéreos; há os que com facilidade mantêm o controle do sistema nervoso em situações de risco de vida e não perdem a lucidez; há os naturalmente prudentes, que não agem sem antes refletirem e se aconselharem com pessoas sensatas; e há as que com facilidade são justas em suas ações.

O que é exigido de cada um na vida social e de relação é que saiba fazer bem aquilo a que se proponha. A esta capacidade de fazer bem dá-se o nome de “talento”, que é o resultado do empenho persistente para se chegar ao domínio de certa capacidade de ação.

Para cada tipo de amizade, requer-se um tipo de talento. Por exemplo, os jogos (esporte e atletismo, por exemplo), que são os multisseculares bons instrumentos para o desenvolvimento de sadias amizades deleitáveis entre as crianças (porque neles, por exemplo, o contato físico não é venéreo) requerem talentos específicos. O mesmo se pode dizer da amizade útil, que se situa na base na vida profissional: o empreendedor que possua recursos mas não habilidade no manejo de certos instrumentos de trabalho, necessita de indivíduos aptos ao desempenho de tarefas específicas, aos quais remunerará pelo trabalho, ambos se beneficiando durante o tempo em que convierem um ao outro.

É inimaginável a quantidade e qualidade de talentos que o ser humano pode desenvolver. Porém, um cuidado é de suma importância – e aí está o ponto chave – o de desenvolver-se talentos como extensões da própria vocação. Pois é possível desenvolver talentos que não guardam relação direta com a própria vocação e neste fato reside a causa de vícios e infelicidades.

Um exemplo pode lançar luz ao caso. Conheço pessoa cuja (numerosa) família de antepassados tem como denominador comum a vocação artística. A vocação artística dota a pessoa para emular (imitar) o que é característico das demais vocações. Em virtude desta característica, eis o que aconteceu: nesta família, havia uma matriarca, com marcada vocação artística, que era mulher altamente ambiciosa. Nunca alguém soube que ela tivesse sido passada para trás em alguma transação, ou que ela não tivesse tido êxito em algum empreendimento ao qual se aplicasse. A todos os filhos ela fez que trabalhasse em atividades convenientes aos seus negócios: venda de colchões, de camas, de frutos do campo. Pelo fato de a base vocacional de seus filhos ser artística, todos – uns com mais dificuldade, outros com menos – conseguiam desempenhar, e bem, as tarefas que lhes eram designadas. Ocorre que em não poucos casos, a vocação de alguns requeria ofícios menos braçais e mais intelectuais. O cansaço que esta defasagem entre o que a vocação exigia e a maneira como a vida estava organizada, infelicitou a maioria dos filhos, não obstante viverem vida social com a marca própria dos bem-sucedidos. Alguns morreram cedo, provavelmente devido ao desgaste e à permanente tristeza de uma vida dispersa por esforços não plenamente satisfatórios.

Ora, se isto é assim quanto à vida social e profissional, imagine-se quantas dificuldades para o indivíduo conseguir estabelecer amizades adequadas em caso de ele desenvolver talentos não plenamente compatíveis com sua vocação. Esta condição é que leva a muitos a transformarem em relacionamentos inconvenientes o que antes deveria ser vivido como simples e saudável convívio social; é o que leva muitos a ficarem persuadidos que, para escolher profissão, basta que ela seja capaz de ser ofício que “dá dinheiro”; é o que também leva a muitos a crerem que não é possível haver amizade verdadeira, onde seja possível viver, em vida mesmo, aquilo que é a seiva do tecido das relações humanas na Igreja, a “comunhão dos santos”.

Deve-se sempre colocar empenho em desenvolver talentos compatíveis com a vocação natural que Deus deu a cada um. Esta é a condição imprescindível para que os apelos dos instintos não se pervertam no contrário da virtude.

Joel Nunes dos Santos, em 27 de agosto de 2011.

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