domingo, 7 de agosto de 2011

A vocação do homem e a suma gentileza de Deus

Deus espalhou vestígios de Si em toda a criação, disso não há que alguém ter dúvida. E isso fez para que cada pessoa se admire com Ele, O adore e O ame.

Por Sua grande misericórdia, Deus permite que os santos e os anjos atuem em favor dos homens de maneira compreensível pela perspectiva da vocação de cada um. E Deus assim faz com tamanha gentileza que muitas pessoas, cegadas pela falta de fé, nem sintam de maneira abrupta os mais que desagradáveis efeitos de suas ofensas a Deus. Deus espalha no curso da vida tanto Suas bondades aos que agracia quanto a Sua justiça aos que O ofendem, mas o faz de maneira delicadíssima, uns e outros muitas vezes ficando conscientemente alheios às razões sobre porque suas vidas ficam deste ou daquele jeito.

Vários são os acontecimentos que ilustram a infinitamente comovente gentileza de Deus. Nunca é cansativo repetir o exemplo de tal gentileza aplicada a Maria. Deus não se dirigiu a ela diretamente, provavelmente para deixá-la o mais livre possível para aceitar ou recusar a tão incomparável honra de acolhê-Lo no seu ventre. Enviou um anjo que lhe perguntasse se ela aceitava a deferência. Ela aceitou, pois de resto aceitaria (como aceitou) tudo que dEle procedia. Mas, ao mesmo tempo em que aceitou, antes colocou uma dificuldade que ela não teria como resolver: ela se consagrara a Ele, num consórcio eterno; portanto, não poderia consorciar-se com qualquer outro. E Deus concedeu fazer o mais aguardado milagre de toda a criação, encarnar-se por ela e, ao mesmo tempo que o fizesse, não rompesse aquele consórcio, objeto de sua consagração a Ele. Maria permaneceu a sempre virgem e casta rainha dos anjos e dos homens.

A lista de eventos onde a gentileza de Deus se manifesta com clareza meridiana não tem fim. E é de se crer que as maneiras que tal gentileza assume estão em conformidade com o entendimento do que recebe a graça. E que maior entendimento pode o homem ter das coisas senão quando elas possuem características combinantes com sua vocação? Veja-se o exemplo de Irmã Lúcia, cuja vocação natural parece ser de tipo científico. Ela várias vezes se refere à sua prodigiosa memória – e memória com funcionamento diferente da de Santo Tomás de Aquino. Este, disse de si que nunca esqueceu alguma coisa que tivesse lido; a Irmã Lúcia, que nunca esqueceu (nem poderia esquecer) o que viu. Porque a ciência (como no caso de Irmã Lúcia) acompanha os sentidos, sendo como que um prolongamento intelectual deles, enquanto que a filosofia (Santo Tomás de Aquino) afasta-se dos sentidos, ainda que não os negue. A Santa Teresinha, as graças de Deus parece terem assumido expressões primeiramente artísticas, do mesmo modo que a vocação de sua santidade manifesta-se como arte: suas respostas são rosas. Santo Agostinho começou a ser beneficiário da graça da conversão de uma maneira adequada aos de vocação filosófica: a dúvida o levou ao seio da Igreja.

Se voltarmos a atenção para nossas vidas, veremos como Deus é gentilíssimo, concedendo-nos as graças que concede com a cor da nossa vocação. E talvez isto seja assim porque “a graça aperfeiçoa a natureza”: a graça de Deus não repugna a vocação natural que Ele mesmo dá a cada homem, mas, antes, pelos caminhos que ela (a vocação) possibilita, eleva o homem até Ele, de modo que O adore e O ame. Vale narrar um caso pessoal que ilustra a tamanha gentileza de Deus que, como disse, O leva a espalhar no tecido cotidiano das nossas vidas as graças com as cores de nossas vocações, para que melhor percebamos Seus vestígios.

Conheço uma mulher que se esforça por agradar a Deus e não ofendê-Lo. Fazendo o que a Igreja ensina, recorreu a São José e pediu-lhe que intercedesse a Deus para que tivesse sua casa reformada – dentre outras coisas, ela temia acidentes, como incêndio, que estariam prevenidos caso Deus a atendesse. Ora, tal graça ela pediu por carecer de recursos suficientes para a empreitada. São José atendeu-a, porém de um jeito inicialmente incompreensível: fez com que a sogra desta mulher, depois que ela teve um AVC, fosse para sua casa e lá ficasse hospedada. Se a preocupação com algum acidente possível em casa necessitada de reforma já costumava atrapalhar-lhe o sono, as dificuldades aumentaram porque a referida sogra é de tal jeito que dá razão ao ditado que diz “a sogra costuma ser tanto mais amada pela nora quanto maior é a distância em quilômetros que há entre elas”. Por exatamente um ano inteiro não foi possível a esta mulher deixar de crer que Deus fez “o inimigo morar na sua casa”, a única explicação para o fato sendo porque na família desta sogra só o filho casado com esta nora é católico. Geralmente, as especulações do casal a respeito do fato terminavam com a frase: “Acho que ela veio para cá por causa de alguma combinação entre São José e Nossa Senhora, que estão sempre de acordo um com o outro. Nossa Senhora aceitou depositar nas mãos de São José a graça pedida mas, de quebra, acrescentou algo assim como um imposto: a casa seria reformada mas serviria também para a sogra passar os últimos dias num lar católico.”

O que aconteceu no transcurso de um ano exatamente? Aconteceu isso: a sogra é pessoa muito exigente. Alguns de seus filhos, para acomodarem-na bem, providenciaram reforma na casa que a hospedou, não somente eliminando a preocupante possibilidade de acidentes quanto embelezando-a. E quando a permanência da sogra ia completar um ano exatamente, surgiram dificuldades financeiras que para serem superadas exigiam afastar o marido desta mulher da casa, com isso parecendo ter surgido nuvens carregadas no horizonte. “Sozinha com o inimigo”, pensava esta mulher; “não será coisa fácil! Mas se é o que Deus quer e se foi assim que São José entendeu meus pedidos, e sendo eu católica, então é aceitar a situação presente e futura como penitência!”

Nesse ponto da história um evento insignificante, não presenciado pela nora, constituiu a ocasião em que São José deu a ver a lógica de sua intercessão: o evento permitiu enxergar a personalidade da sogra com precisão clínica. Os defeitos de caráter que ela manifestava (não somente no presente, depois do AVC, mas durante toda sua vida) não são frutos de malícia ou maldade, mas, sim, de deficiência psicológica. Por alguma razão o seu desenvolvimento psicológico estacionou em estágio pré-adolescente (psicólogos americanos denominam a este tipo de síndrome de “Complexo de Peter Pan”). A situação então mudou: o “inimigo” perdeu a força de assustar a nora e, ao contrário, passou a diverti-la. Mais ainda: os filhos desta sogra (sete ao todo), com exceção de um, afastaram-se física e afetivamente dela, por interpretarem seus caprichos como fruto de personalidade má. Ao conhecerem a outra razão, a deficiência psicológica de sua atormentada mãe, viram nascer no coração disposição benevolente a seu respeito. Nas palavras do que provavelmente é o mais culto deles, este novo conhecimento sobre ela ajuda a “ter uma visão mais compreensível,amena, suportável, de mamãe, e isso é bom”.

Onde nesse relato entra a relação entre a vocação do homem e a gentileza de Deus? Entra aqui: a vocação da nora é artista-interpersonalística); a da família desta sogra, interpersonalista-artística. A graça por intercessão de São José assumiu a forma de arte, e arte teatral, onde o conhecimento isolado de cada participante da trama era insuficiente para permitir visão do conjunto. Esta visão só ficou clara no fim do processo, quando a casa ficou reformada – isto é, o pedido foi pontualmente atendido – e a mulher que pediu viu-se na contingência de ficar sozinha, com “o inimigo”, dentro da casa reformada. A casa ficou mais aconchegante e o inimigo se converteu em “pré-adolescente” que, ainda que seja portador de certos defeitos de caráter, manifesta junto com eles um freio: a sogra, com mais de oitenta anos, é de família católica e foi muito bem educada, sua ruptura com a Igreja dando-se após sair da casa paterna. A paciência e piedade por ela cresceram sobremaneira.

Joel Nunes dos Santos, em 6 de agosto de 2011.

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