Cada vocação possui seu correspondente tipo de dificuldade ou provação. Ainda que a pessoa dela se desvie, escolhendo engajar-se em atividades dela afastadas, mesmo isto não quer dizer que ela esteja sendo negada. Neste caso o sujeito tenderá a agir de maneira contrária aos próprios interesses. Por exemplo, suponha alguém que possua vocação compatível com o exercício da enfermagem mas decida ser bancário. Não será de estranhar que experimente dificuldades em estabelecer relações de amizade saudáveis dentro e fora do ambiente de trabalho, pois seu sistema nervoso é naturalmente dotado para suportar experiências não previstas de ocorrerem nos ofícios contábeis. O mesmo se diga de criança com vocação compatível com o exercício da medicina: caso ela não seja ajudada a dar-lhe o aporte cultural adequado, seus gostos parecerão coisas mórbidas. Sua curiosidade a impelirá a querer contemplar coisas que exigem sistema nervoso apto a não se descontrolar face ao corpo humano ferido.
Pois bem, é coisa valiosa observar qual a vocação de Santa Teresinha e que dificuldades ela superou numa fase da vida em que tal feito costuma ser impensável para muito mais que a média das pessoas.
No seu escrito autobiográfico – “História de uma alma”, Paulus, 2003, 23ª. Ed. – em quase toda página é possível pinçar expressões que denotam ser artística sua vocação. Quando ela cai em profunda depressão e definha e seu pai chega ao ponto de autorizar que receba a Extrema-Unção (pois era coisa certa sua morte), ela vê Nossa Senhora sorrindo para ela: “De repente, a Santíssima Virgem me pareceu bela, tão bela, como nunca tinha visto nada tão formoso. O rosto irradiava inefável bondade e ternura, mas o que me calou no fundo da alma foi o ‘empolgante sorriso da Santíssima Virgem’.” (p. 81). “Foi sua simples figura que me impressionara...” (p. 83). Para ela, a recompensa era ver, como diz (p. 84) “No entanto, minha querida Mãe, às belas estampas que me mostráveis, como recompensa, devo uma das mais doces alegrias e uma das mais vivas impressões que me incitavam à prática da virtude...”. “Gostava, outrossim, de contar histórias. Inventava-as na medida que me vinham à imaginação”. (p. 96). Tudo isso provocava nela profunda impressão, não por força de alguma explicação que viesse junta com o visto ou imaginado (como se daria caso sua vocação fosse de tipo filosófica, por exemplo), mas assim: “Apanhava com facilidade o sentido das matérias que aprendia, mas tinha dificuldade em aprender palavra por palavra.”
Estas e outras passagens vão pondo em destaque a força de uma imaginação artística. E então pergunta-se: qual é a provação forte para alguém dotado de vocação artística? É a provação resultante da necessidade de reconhecimento, pois ninguém exercita pintar senão para expor sua obra; ninguém treina um instrumento senão para executá-lo para terceiros.
Para se fazer idéia, ainda que somente um pouco, da força da imaginação atuante nos de vocação artística, exemplifico com a realidade da música para pessoa a ela vocacionada. A música faz na imaginação do ouvinte o que o arquiteto faz no mundo exterior. O arquiteto define como será a construção, a qual terá de possuir forte afinidade com a estrutura psicológica daqueles para quem ela é feita. O músico, com sua arte, impulsiona a imaginação do ouvinte a construir uma paisagem que é fortemente real justamente porque os elementos que a compõem são retirados daquilo que ele recorda ou desejaria ter vivido. Por exemplo, nunca vi um castelo, pois nunca fui à Europa. Mas ao ouvir certas músicas (como algumas Suites de Bach), vejo-me sendo levado a um planalto onde vislumbro um imponente castelo. Ora, este castelo pode ser completamente diferente de todo e qualquer castelo que exista na realidade; porém, como ele é composto de “material” oriundo de minha própria imaginação, para mim ele soa mais real do que algum outro que eu visse com meus olhos físicos. Não é coisa fácil ao de vocação artística tornar-se indiferente à força da própria imaginação, pois para ele as “presenças” que o dar-se das coisas que vê, ouve, olfateia, etc., fazem crer tratar-se de coisas reais.
Na época em que Santa Teresinha refere os acontecimentos de sua vida acima citados ela estava com, no máximo, 13 anos! E 13 anos vividos em condições tão ideais que dificilmente alguém conseguiria supor haver algo melhor. Ela possuía a ventura de ser muitíssimo amada por sua mãe, seu pai e suas irmãs, não sendo raros os episódios em que esses parentes pareciam adivinhar o que lhe ia na alma tanto que a amavam. E seu pai? Este, então, nem se fala! Ele a presenteava com flores ou outras coisas que para ela eram os entes mais dotados de sentido que poderia existir.
Mas então esta simples florzinha conclui que “...o Bom Deus queria meu coração só para si e “já atendia minha oração, quando “trocava em amargura as consolações da terra”, (p. 97) tomando para si as palavras do livro “Imitação de Cristo. E ela sabia muito bem o que fazia, ao entregar-se de corpo e alma a Cristo, ao custo de renunciar ao que sua natureza apetecia honestamente: “Para mim [tornar o coração exclusivamente para Deus], isso se tornava tanto mais necessário, quanto mais não me conservaria insensível a louvores.” “...Meu coração, sensível e amoroso, facilmente se teria rendido, caso deparasse com um coração capaz de compreendê-lo...”. E não lhe faltou esforços neste sentido: “Tentei ligar-me a meninas de minha idade...”(p. 97), do mesmo modo que a vista se une à cor, o olfato ao odor e o artista a seu público, àquele que o compreenda ou possa compreendê-lo.
Este movimento da alma de uma garota de 13 anos só é possível quando a vocação é aceita e cultivada de modo tão exigente que só se contenta com o que ultrapassa as alegrias e se orienta em direção à felicidade mesma, a qual só é verdadeira e permanente quando o que a provoca é Deus e sua mais bela criação, Maria.
Quem, com tão clara e evidente vocação artística, conseguiria suportar o impacto da falta de atenção? “Sentia que era maior vantagem falar com Deus do que falar de Deus...”. Este sofrimento interior – de falta de atenção – foi o fogo com que se criou o aço da firmeza amorosa da Santa Flor. “Ninguém me dava atenção, e por isso subia à tribuna do coro da capela, ficando diante do Santíssimo Sacramento...”. Uma criança de 13 anos!
Joel Nunes dos Santos, 09 de julho de 2011.
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