domingo, 12 de junho de 2011

Vocação e Família - VII

Foi em 1992 que pela primeira vez eu soube que certa qualidade da pessoa, que sempre chamou minha atenção em cada uma que vim conhecendo ao longo da vida, tinha um nome específico: “vocação”. Não me lembro de ter conhecido alguém que não me provocasse a impressão de possuir algo diferente, algo que justificava o amor que sempre era capaz de despertar em algum próximo. Em vão procurei uma definição de vocação, não obstante parecer coisa clara nos mais diversos escritos de autores, tanto interessados na vida natural do homem quanto na vida espiritual. Era perceptível que havia (e há), no emprego do nome vocação, uma conceito pressuposto: ela é a qualificação formal da competência e autoridade da pessoa neste ou naquele domínio da vida natural ou sobrenatural.

Mesmo nos escritos em que o nome “vocação” está ausente, a descrição que os escritores fazem de si ou de seus biografados aponta na direção de qual deva ser o início de sua investigação. Por exemplo, respondendo a alguém que lhe perguntou por que desbastava tanto o próprio texto, reduzindo-o às palavras essenciais para a exposição de sua intuição, Graciliano Ramos respondeu (não com essas exatas palavras) que “meu avô fazia cestas de vime. Ele sentava e começava a fazer a cesta e dáva-lhes nós firmes e não levantava enquanto não terminasse o, tivesse feito os reparos necessários e eliminado os supérfluos. Faço o mesmo com o texto.” Sócrates, o primeiro filósofo, disse algo parecido sobre si mesmo: “Minha mãe é maiêuta [parteira]. Ela ajudava a criança a sair do ventre da mulher grávida. Eu retiro o conceito da mente do interlocutor.” É fila que não conhece fim: quanto mais se leia biografia ou texto biográfico, a história é sempre a mesma: o biografado é a pessoa que personaliza aquilo que recebeu de seus ancestrais.

No curso dessas reflexões, ao longo dos anos, foi acontecimento fortemente impactante observar que o Evangelho de São Mateus começa com as palavras: “Genealogia de Nosso Senhor Jesus Cristo...”. Então, tamanha é a humildade de Deus que a Ele aprouve fazer-se em tudo igual ao homem – exceto no pecado –, esta semelhança incluindo também dar-se uma genealogia, como que significando que a santidade pretendida pelos que o antecederam, Ele a realizaria plenamente, de maneira análoga a como nós, pessoas comuns, ao personalizarmos a vocação familiar, ao termos êxito nisto, mostramos com nossa vida o que nossos ancestrais buscavam realizar, sem disso sequer terem consciência?

Provavelmente é por isso que o eterno inimigo do homem inspirou os poderosos formadores de opinião do último século a pregarem contra a família, contra o respeito ao quarto mandamento (“Honrar pai e mãe”), pois assim as pessoas ficariam perdidas, confusas e, esquecendo-se da própria mãe, pai e demais ancestrais, desprezariam a Santa Mãe Igreja. Subtraindo-se de pensar nos próprios ancestrais, de modo que conhecendo-os seja possível honrá-los com consciência clara do que se estar a fazer, perdem grande chance de conhecerem a própria vocação. Pois o conhecimento da vocação começa com a percepção clara daquilo a que eram sensíveis, daquilo que nossos ancestrais valorizavam naturalmente.

Talvez por causa da fixação de minha mente e coração neste tema eu tenha visto no escrito de René Fülöp-Miller referência à força do elemento ancestral e vocacional, quando escreveu em sua obra “Os santos que abalaram o mundo” sobre Santo Antão. Escreveu:

“Para escapar à garra do demônio, [Santo Antão], primeiro que tudo, tinha que tentar ultrapassar o limite do poder do demônio. Devia mudar-se do reino dos vivos para o reino dos mortos. Para atingir isto, decidiu trocar seu refúgio, sob o sarçal, por um túmulo, o abrigo da morte, totalmente isolado do mundo e dos vivos.
No Egito, o túmulo tinha significação muito maior do que tem na nossa civilização. A temporal do homem era para o egípcio uma simples peregrinação no caminho para a vida eterna. Um abrigo terrestre era apeans um repouso para o viajange, mas um túmulo era uma “mansão de eternidade”. Isto explica por que os túmulos estavam designados a desempenhar papel tão preeminente na cena egípcia. Verdadeira cidade dos mortos, eram eles cavados na rocha da montanha que borda o deserto líbio. Tinham a dureza e a perenidade do granito e de sua majestática altutide olhavam para baixo com desdém, para a efêmera mesquinhez das habitações de adobe dos vivos.”

Assim, Santo Antão, para morrer para si e renascer em Cristo, vive experiência de “morte” voluntária, fazendo vibrar na sua alma as cordas que foram, ao longo de gerações anteriores, afinadas por seus ancestrais.

Que este santo nos sirva de exemplo e, imitando-o, honremos pai e mãe e alcancemos tudo mais que pode decorrer desta honra . E, ao fazermos isso, conheçamos um pouco qual é nossa própria vocação. Porque sem conhecê-la não parece ser coisa fácil servir a Deus como devemos nos esforçar por fazer.

Joel, em 10 de junho de 2011.

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