quarta-feira, 1 de junho de 2011
Missal de São Pio V
Caro e paciente Visitante meu, somente para que os leitores menos familiarizados com a guerra que os sites tradicionalistas (que são muitos) fazem contra a Missa no rito do Missal de Paulo VI, gostaria de esclarecer que o grande cavalo da batalha desses grupos é a Bula Bula Quo Primum Tempore, de São Pio V, datada de 1570. Nesta bula, o Papa promulga o Missal Romano reformado por determinação do Concílio de Trento. Lá para as tantas, explicitando a promulgação, com a linguagem solene e peremptória própria dos papas dos séculos anteriores, o Santo Padre Pio V afirma: “A fim de que todos, e em todos os lugares, adotem e observem as tradições da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igrejas, decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas...” Mais adiante, o Papa afirma: “Quanto a todas as outras sobreditas Igrejas, por Nossa presente Constituição, que será valida para sempre, Nós decretamos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que o uso de seus missais próprios seja supresso e sejam eles radical e totalmente rejeitados; e, quanto ao Nosso presente Missal recentemente publicado, nada jamais lhe deverá ser acrescentado, nem supresso, nem modificado”. São estes “para sempre” o cavalo de batalha dos tradicionalistas: nunca, jamais, de nenhum modo, em tempo algum poder-se-ia alterar o rito da Missa tal como Pio V o aprovou! Ora, afirmar isto é algo totalmente fora de propósito e teologicamente errôneo! Dou somente alguns motivos:
1. É necessário compreender o contexto desta Bula. A Igreja estava reagindo à Reforma protestante, que difundiu erros graves contra a fé católica. Muitos desses erros tocavam os sacramentos, sobretudo a Eucaristia. Um dos modos que a Igreja julgou eficaz para combater o erro e manter a unidade da fé foi desencorajar o uso dos vários ritos de celebração da Missa, ritos que existiam em várias regiões da Europa. Só a título de exemplo: o rito ambrosiano, na Diocese de Milão, o rito próprio da Diocese de Braga, o rito de Dijon, ainda hoje com alguns resquícios entre os monges trapistas, o rito da Grenoble, guardado pelos monges cartuxos, o rito moçarábico, em regiões da Espanha, etc. Por isso mesmo, na sua Bula, São Pio V determina que somente é permitido que permaneçam sendo usados os ritos que tenham mais de 200 anos. Interessante que o santo Papa nunca pensou que em toda a Igreja deveria existir somente o rito do missal que ele estava aprovando. Os ritos ocidentais com mais de 200 anos poderiam continuar existindo; sem contar os venerabilíssimos ritos das Igrejas orientais católicas ou ortodoxas, como a liturgia da São Basílio ou a de São João Crisóstomo, que a Igreja sempre teve em alta conta... Se a grande maioria dos ritos ocidentais desapareceu não foi por proibição de São Pio V, mas por obra dos monges beneditinos de Solesmes, na França, que no século XIX fizeram todo um trabalho de exaltação do rito romano com sua sobriedade, e crítica a aspectos dos outros ritos. Era uma época de forte centralização romana na Igreja, por motivos históricos válidos e compreensíveis.
2. O Santo Padre Pio V, com a linguagem que usou, jamais pensou em proclamar como um “dogma” o seu Missal! Um papa – qualquer papa – somente pode falar de modo definitivo e infalível em dois casos: 1) Quando proclama ou ensina “ex cathedra” sobre fé e moral, nunca sobre disciplina litúrgica não revelada e 2) Quando, interpretando o magistério ordinário do inteiro Colégio dos Bispos sobre fé e moral, proclama que uma determinada doutrina de fé e moral pertence à fé católica tal como revelada por Deus – e isto de modo definitivo (foi o caso da doutrina segundo a qual as mulheres não podem receber a ordenação sacerdotal. Esta sim, é definitiva e irreformável!). Fora disso, o Papa não pode falar de modo definitivo! São Pio V, coitado, apenas promulgou uma Bula para aprovar o belíssimo Missal, fruto da reforma litúrgica do Concílio de Trento! Nunca, em quinhentos anos, se pensou que o Missal seria irreformável! A prova disso é que o Bem-aventurado João XXIII, antes do Vaticano II, fizera uma pequena modificação no Cânon Romano, acrescentando à lista dos santos aí citados, o nome de São José, esposo da Virgem Maria. Pela interpretação dos tradicionalistas, jamais João XXIII poderia ter feito isso!
3. Nenhum Papa é obrigado a manter as normas disciplinares de um outro. O Papa somente não pode mudar aquilo que é de fé e moral revelada e, portanto, faz parte do Depósito da Fé! Quanto ao resto, ele tem plena autoridade na Igreja! O Papa atual não é são Pio V: é Bento XVI, como o da reforma litúrgica pós-Vaticano II era o Servo de Deus Paulo VI, de santa memória! Cada um, no seu tempo, gozou de poder supremo, imediato, episcopal e pleno na Igreja por vontade do próprio Senhor.
4. É importante recordar que sempre a liturgia da Missa, desde as origens, vem passando por reformas e evoluções – é coisa normal. Compete ao Papa a última palavra sobre esses assuntos. É verdade que o Missal de Paulo VI é fruto de uma reforma bastante profunda em relação ao Missal anterior. O atual Papa reconhece isso. Ele admira e vê muitos méritos no atual Missal, mas lamenta que não se tenha preservado mais do antigo Missal. Pessoalmente, eu penso assim também: a reforma litúrgica não foi de todo feliz... Pode-se gostar ou não dessa reforma de Paulo VI; o que não se pode é afirmar que ela é heterodoxa ou ilícita! O que não se pode também – e o atual Papa nunca o fez – é absolutizar o Missal de São Pio V de modo totalmente impertinente e unilateral! É uma triste ignorância do que é a liturgia, de como ela faz parte da perene e ao mesmo tempo dinâmica Tradição da Igreja e como ela evolui e evoluirá sempre no decorrer da história.
5. É totalmente falso que o Missal de Paulo VI deturpe ou macule ou mutile a fé católica! O Missal deve ser utilizado, interpretado e vivenciado no contexto de toda a doutrina da Igreja e não como um texto isolado em si mesmo, pois que a oração da Igreja, sobretudo a litúrgica, brota da sua vida e da sua fé e, ao mesmo tempo, as exprime!
6. Por outro lado, os tradicionalistas têm razão quando deploram e rejeitam todos os abusos e loucuras cometidas nos últimos anos na liturgia em nome de uma tal de “criatividade”, compreendida de modo totalmente contrário ao pensamento da Igreja e ao magistério dos últimos papas! Quantas vezes tenho denunciado isso neste blog! Se o Missal de Paulo VI fosse usado como a Igreja pede e determina, muito desse mal-estar poderia ser evitado!
7. Quero deixar bem claro que é possível e plenamente legítimo amar e apreciar a beleza do rito da Missa segundo o Missal de são Pio V e desejar celebrar a Eucaristia nesse rito. O que atrapalha e é errado é refutar o Vaticano II, acusar Paulo VI e absolutizar (= endeusar), como se fosse determinação eterna, uma norma de um Papa que nunca teve a intenção de dar um alcance absoluto a suas palavras! O Missal de São Pio V foi um a mais na longa evolução da litúrgica da Igreja. A "Missa de Sempre", a que se referem insistentemente os tradicionalistas, é o Sacramento da Eucaristia, seja em que rito legítimo seja celebrada: rito romano, melquita, maronita, malaber, malankar, ucraniano, copta, armeno, etíope, bizantino paleoeslavo, etc...
Observação minha: Só, a título de esclarecimento, uma questão interessante: E se São Pio V tivesse pensado realmente em decretar que o seu Missal seria para sempre, os papas seguintes poderiam mudar isso? Poderiam, perfeitamente! São Pio V teria (o que não fez) exorbitado nas suas prerrogativas! Um Papa somente pode determinar para sempre o que pertencer ao Depósito da Fé. Sobre o modo de celebrar a Eucaristia o que pertence ao Depósito da Fé é que deve ser celebrada por um sacerdote validamente ordenado, que o povo de Deus concorre na celebração, que deve haver liturgia da Palavra e liturgia eucarística, que se devem usar como matéria o pão e o vinho (com água). Sobre o restante, em questão de rito, a Igreja tem plena autoridade de dispor e determinar... Aliás, essa história de “não poder mudar nada” é o mesmo argumento que os ortodoxos usam para acusar os católicos de terem mudado o Credo, acrescentando o Filioque. Isso porque eles se apegam a uma expressão fora de contexto, presente no Concílio de Calcedônia: “Depois de termos estabelecido tudo com toda a possível acríbia e diligência, o santo Sínodo ecumênico decidiu que ninguém pode apresentar, escrever ou compor uma outra fórmula de fé ou julgar ou ensinar de outro modo”... Pois bem: o Credo do Missal de são Pio V traz o “acréscimo” do Filioque, que a Igreja latina fez ao Símbolo niceno-constantinopolitano na Alta Idade Média! Os tradicionalistas que absolutizam a Bula Quo Primum Tempore, deveriam também, para serem coerentes, dar razão aos ortodoxos e afirmar que a Igreja católica todinha caiu em heresia porque acrescentou o Filioque ao Credo! Como se pode ver, é necessário saber manejar as categorias da teologia de acordo com seus princípios epistemológicos e hermenêuticos. Do contrário, haja tempestade em copo d’água e haja bobagem dita com ares de douta erudição!
http://www.padrehenrique.com/index.php/doutrina-catolica/269-site-montfort-tradicionalistas-integristas-e-males-congeneres-
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Excelente o artigo.Deus seja louvado!
ResponderExcluir