domingo, 24 de abril de 2011

Vocação e Família-II

“São as famílias o lugar onde nascem as vocações.” Assim disse o Santo Padre, o Papa Bento XVI. Porque na família dá-se o amor desinteressado, a doação gratuita de si ao outro, a condição necessária para tornar possível auxiliar de maneira indelével às crianças que Deus colocou sob nossa responsabilidade.

Vale aqui relatar casos reais que dão abono às sábias palavras do Papa Bento XVI.

Começo pelo caso de uma mãe, que não é (nem nunca foi) católica, de modo que suas crianças, uma menina de 4 e um menino de 6 anos, não possuíam hábitos morais já presentes nas crianças que fazem uma boa catequese. Pelo contrário, pelo menos a garota já possuía um hábito difícil de eliminar nas crianças, o hábito de ver televisão e desenvolver gostos por coisas ruins. A garota adorava dançar, gesticulando como as dançarinas dos comumente licenciosos programas dirigidos às crianças da atualidade. O menino gostava de papel e lápis.


A mãe dessas crianças participou de uma das turmas a quem lecionei sobre vocação, quando disse que “a família, em particular a mãe, deve atuar como porta de entrada da criança na cultura universal”, isto é, naquele tipo de cultura que exalta valores como a arte, a estética, a ciência, a filosofia e assim por diante. Pois se desde criança cultivarem-se sementes que dão esses frutos, a adolescência pode se transformar em época da vida dedicada a reflexões racionais capazes de tornar a alma tão exigente que ela então buscará o natural repouso que só tem como dar-se com o atendimento da vocação, do chamado de Deus a uma vida com sentido.


“Se trabalho todo dia, chego a casa no horário de fazer e dar comida a minhas crianças e ajudá-las nas tarefas escolares, e meu marido trabalha de madrugada, como eu poderia ser a tal porta de entrada deles na cultura universal?”, perguntou-me esta zelosa mãe. Dialogando com ela, soube que ela começou a cursar Psicologia mas não conseguiu tolerar esta cultura, preferindo cursar Contabilidade, com o que passou a trabalhar. Era freqüente seus chefes designarem-na ao papel de instrutora dos novos funcionários do setor, a quem ensinava os procedimentos contábeis e, na continuação, os fundamentos da Contabilidade. Sentia-se contente com o trabalho mas preocupava-se com os filhos, com quem mantinha contato direto nos fins-de-semana, após o entardecer de sexta-feira, quando voltava para casa do trabalho e com eles ficava, sem experimentar o menor desejo de sair de casa durante todo o fim-de-semana. Preocupava-se de eles estarem sendo educados pela TV, principalmente a garotinha, que gostava de dançar. Instruí-a como descrevo a seguir, claro que não com essas mesmas palavras, mas de modo adaptado a seu entendimento, de modo que ela pudesse enxergar que direção imprimir à vocação artística de seus filhos e bem encaminhá-los na vida. (Omito, por ora, a análise da vocação de toda a família, onde o que sempre deu certo foram sempre atividades que exigem dons artísticos).

Quanto à dança de que sua filha ainda criança gosta, ela gosta porque ainda não atingiu a idade onde a razão é capaz de bem ajuizar sobre as coisas. Ela enxerga nos movimentos do corpo não a malícia que nós adultos somos capazes de ver, mas um esforço de fazer coisas com o corpo apreciadas pelos demais. Neste gosto percebe-se no fundo forte componente da vocação artística, de arte onde o próprio corpo desempenha papel fundamental. Deste tipo de vocação é que podem surgir fisioterapeutas vocacionados, bem como profissionais de áreas onde o uso estético do corpo e das coisas com ele relacionadas tem destaque. Seja qual forem as escolhas futuras que sua filha fizer, é muito provável que elas terão relação com o uso do corpo como instrumento direto de trabalho, por exemplo, caso se dirija a alguma área de formação científica, a Fisioterapia. Como o interesse presente, dela, é a dança, convém analisar o que ela é e os graus crescentes de perfeição que ela pode atingir, entendendo-se que cada arte é tanto mais perfeita quanto mais consiga ser bom instrumento de expressão da boa e honesta intencionalidade do homem.

A dança é a racionalização do gesto e do movimento do corpo. E como tudo o que o homem faz, é instrumento de expressão de intencionalidades. A intencionalidade que se nota nas danças, quando agrupadas umas ao lado das outras, diz respeito à inata capacidade do homem para relacionar-se com um número crescente de pessoas. De modo que a dança pode ser vista como uma linguagem que usa o corpo como instrumento de expressão de realidades que exibem um número crescente de pessoas. É algo parecido com o que se na gramática, quando esta trata dos pronomes pessoais do caso reto, que são “eu”, “tu”, “ele(a)”, “nós”, “vós”, “ele(e)s”. Primeiro, sou eu sozinho, em seguida, a pessoa mais próxima afetivamente de mim, o tu; depois surgem a pessoa com quem não estabeleço relação muito próxima e me refiro apenas como “ele”; aí passo àquelas com as quais me identifico, por questão de família ou outro tipo de afinidade, e lhes refiro como “nós”; em seguida, surgem aquelas a quem dedico respeito e lhes dou tratamento formal, chamando-as de “vós” e, por fim, pessoas indeterminadas, que reconheço a existência, força, etc., e simplesmente chamo de “eles(as)”. Assim, do “eu” até “eles” meu horizonte interpessoal expande, aumenta em amplitude, aumenta o número de pessoas implicadas.


Ocorre algo semelhante com a dança. Há aquelas que são como que somente expressões de descarga nervosa, sem a feiúra dos automatismos musculares presentes nos ataques nervosos. Este tipo de dança manifesta-se através de um único indivíduo isolado dos demais, e o exemplo nosso conhecido é o samba, onde a velocidade de movimentação das pernas e a habilidade com que se faça isso é uma retomada da estética de certos povos africanos. Em seguida há danças, como algumas latino-americanas, que sugerem a presença do par humano, onde a movimentação e deslocamento dos que dançam, um homem e uma mulher, simulam a corte desta por aquele. Em seguida, há a dança argentina, que faz crer na idéia de êxito da corte, quando então o dançarino dispõe da dançarina, arremessando-a daqui para lá, numa simulação de êxito da conquista. Há a dança, espanhola, que provoca em quem a vê a impressão de multidão, onde há a disputa de uma mulher por dois pretendentes, além da multidão à volta que assiste ávida de ver o desenlace final da peleja. Até chegar ao balé, cuja exigência de conhecimentos anatômicos é máxima, para que seja possível aos bailarinos expressarem idéias abstratas, por exemplo, o movimento elegante, suave e sem contrariedade que o homem pode ver a olho nu a qualquer, o movimento do deslocamento do cisne na água.

Assim, a dança vai desde a expressão mais tosca, quase puro movimento muscular automático, até a expressão de um movimento sem contrariedade como o expresso pelo balé “O lago dos cisnes”. É uma caminhada que vai do plano quase que puramente neurológico e físico até aquele que tangencia a metafísica. E todos sabemos que a educação, a boa educação, não tem por meta extirpar os impulsos da alma, mas sim regrá-los. É a ausência da educação desta capacidade que torna grande número de nossos jovens incapazes de darem tradução adequada e humana a seus impulsos agressivos. Época houve em que as frustrações afetivas provocavam o surgimento de poetas e músicos, enquanto na atualidade essas mesmas frustrações afetivas dão surgimento a frios homicidas.

Ora, apresentando à sua criança esta gradação da dança, permitindo-lhe ver que há algo mais belo e difícil a ser feito com o uso do próprio corpo, vai-se introduzindo em seu espírito um padrão de exigência estética que permitirá a ela progressivamente substituir gostos grosseiros por outros mais refinados. Por exemplo, que é mais difícil equilibrar sobre a ponta dos pés do que simplesmente agitar as partes adiposas do corpo. Para a criança, que rapidamente transforma tudo em esporte, em disputa de capacidade para executar o mais difícil, ao notar que nenhuma das dançarinas que quer imitar faz coisa tão difícil quanto equilibrar-se na ponta dos pés, progressivamente deixará de prestar atenção nelas.


Claro que para transformar a sala de sua casa em ambiente físico onde se localiza a “porta para a cultura universal”, é necessário que você ocupe parte do seu tempo estudando o que seja dança, por exemplo, através de vídeos, aos quais sua filha poderá assistir com muito proveito. Quanto mais você aprenda sobre este assunto, melhor será para sua filha, que a terá como interlocutora a respeito do belo cuja base material é o corpo humano. Assim, ela poderá tanto interessar-se pela dança considerada em si mesma quanto por entender quais são as condições necessárias para alguém poder dançar com beleza.

Há inúmeras ciências que podem ser beneficiadas pelo espírito de uma criança alimentado pela noção de crescimento e diferenciação qualitativa das coisas que fazem parte do cotidiano e que as televisões atualmente exploram somente as partes inferiores e desvirtualizadoras da moral. Mas é aí que entra você, mãe, como a interface entre sua filha e essas coisas, ajudando-a a desenvolver uma resistência psicológica e espitual ao inferior, ao feio, ao que desregra os afetos. Fica para outra ocasião falar dessas ciências ou artes, pois aqui já disse o que parece ser suficiente para a compreensão do que você pode fazer durante os fins-de-semana, e mesmo durante a semana, em que seu trabalho a deixa livre para conviver com seus amados filhos.

No prosseguimento do tema “vocação e família”, tenho a intenção de narrar o que sugeri que ela praticasse no convívio com seu filho de 6 anos.

Joel Nunes dos Santos, 23 de abril de 2011.

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