Há duas circunstâncias extremas que são ocasiões em que geralmente decidimos o rumo de nossas vidas: quando decidimos sob pressão e quando não há nenhuma pressão e mesmo assim tomamos alguma decisão. Esses dois momentos são privilegiados pois neles fazemos uso do preciosíssimo dom da liberdade que Deus colocou no centro da alma de todo homem. Se tivermos o hábito de recordar e descrever as decisões tomadas nesses momentos, paulatinamente vamos percebendo com clareza os contornos de nossa vocação.
Pode parecer que agimos livremente somente na segunda circunstância, quando nenhuma pressão nos força a decidir. Mas é a mesma liberdade que se manifesta tanto no primeiro caso, quando a decisão é tomada em resultado de pressões. Isto porque não está escrito em nenhum lugar que temos de tomar esta ou aquela decisão – a situação no máximo determina que temos de decidir. Pelo quê decidir, e como decidir, não. Não estamos obrigados a afirmar nem espírito de revolta nem de humildade, nem o impulso de fuga ou ataque, de rejeição ou aceitação de seja lá o que for. Nossas decisões, nesses momentos, é livre e por elas delineamos o que somos. Nesta hora, fazemos conosco mesmos algo análogo ao que o escultor, com seu cinzel, faz sobre a madeira, ao esculpi-la e torna-la obra-de-arte.
Mas não é o escultor quem cria a madeira que esculpe, assim como não somos nós que criamos a “matéria” que somos cuja forma configuramos com nossas escolhas. A esta “matéria” que somos, a esta combinação de características físicas e psicológicas herdadas, a Psicologia denomina “temperamento”. Ao resultado da imposição de uma arquitetura própria ao nosso temperamento, à transformação desta matéria relativamente informe que de início somos, a Psicologia chama “caráter”, de onde surge o adágio “o temperamento nós herdamos, o caráter é aquilo que fazemos de nós mesmos.”
Quando recém-nascidos, os que nos vêem notam que a testa veio da mãe, o queixo do pai, os olhos deste ou daquele avô, como se fôssemos uma coleção de traços provindos de diferentes fontes mas que encontram solução de unidade em nós, dando razão ao adágio “a natureza não faz greve”. Nós somos aquilo que força a combinação harmoniosa de contribuições físicas e psicológicas cujas origens estão afastadas umas das outras tanto no tempo quanto no espaço: podemos manifestar uma mistura de características de personalidades tão distintas quanto são distintos nossos bisavós de nossos pais, tios e tias.
Se herdamos o temperamento e sobre ele impomos o que queremos, forjando assim nosso caráter, ao estágio final desse processo a Psicologia denomina “personalidade”. O temperamento é comparável ao retrato do que somos simplesmente porque herdamos estas e aquelas características físicas e psicológicas; o caráter se assemelha não a um retrato, mas um vídeo que mostra as transformações que vamos exibindo no processo de nos tornarmos aquilo que vamos fazendo de nós mesmos; a personalidade é semelhante a um filme, mas um filme em três dimensões, pois mostra a imagem inteira, final, com profundidade, altura e largura, justamente porque nos mostra juntamente a partir daquilo que permanentemente somos em nosso relacionamento com as demais pessoas e com as coisas que a vida põe em nosso caminho.
E aqui retoma-se o que foi dito no início: manifestamos nossa liberdade por meio de nossas escolhas, quer tomadas em momentos de pressão ou em momentos de ausência de pressão. Se estamos aqui e agora vivos, com a mente preservada, a ponto de nos recordarmos dos momentos passados com comoção ou saudade, é sinal de que as decisões que tomamos foram coroadas de êxito. Ao recordarmos tais momentos, vemos brilhar em nosso coração certa luz que nos mostra uma de quatro alternativas: a) que naquele momento ficou claro em nosso espírito algo verdadeiro sobre nós, a vida e o mundo; b) que ficou clara nossa competência a encontrar solução prática a problemas advenientes; c) que ficou claro que preferimos resolver sozinhos nossas dificuldades, por simplesmente não nos ocorrer que seria mais fácil compartilhar o problema com alguma outra pessoa e chegar a uma solução de consenso; d) que ficou claro que fizemos ou deixamos de fazer isto ou aquilo não por nossa causa, mas por entendermos que isto tem forte importância para esta ou aquela pessoa por quem nos sentimos responsáveis ou em ligação de amizade. Pela ordem, percebemos os contornos de vocação filosófica, científica, artística ou altruística (ou “interpersonalística”, uma vez que o nome “altruísmo” possui carga psicológica positiva e não tão nêutra como sempre foi meu desejo conferir ao termo altruismo).
Seja agindo (quando decidimos algo sem estarmos obrigados a nada decidir) ou reagindo (quando decidmos porque as circunstâncias exigem decisão), manifestamos aquilo que somos. Nessas horas, não agimos ou reagimos apenas impulsionados pelo temperamento nem também somente pelo caráter, mas isto fazemos com a espontaneidade manifesta tanto em nossos relacionamentos com as demais pessoas como também com tudo o mais que a vida coloca em nosso caminho. Agimos e reagimos com nossa personalidade inteira. Porque uma coisa é agir com calma por causa do nosso temperamento, isto é, porque possuímos um sistema nervoso semelhante ao deste ou daquele ancestral; outra é agir assim ou assado porque ao longo da vida nos habituamos a dar vazão à força de nosso caráter. Muito diferente dessas duas maneiras é agir ou reagir amorosamente às pessoas, à vida, justamente porque elas constituem os pretextos de respondermos com o coração, com a inteligência e com o sentimento ao que a vida nos coloca, quer sob a forma de circunstâncias materiais, quer sob a forma de relacionamentos com as demais pessoas.
Vale a pena nos determos na recordação do que fizemos em tais momentos extremos, nos momentos em que estávamos como que de férias ou naqueles outros quando parecia que toda a chefia do mundo estava pronta a agarrar nosso pescoço e nos fazer agir. Em ambos os momentos por certo é possível descobrir se os respondemos a modo do filósofo, do cientista, do artista ou do interpersonalista.
Joel Nunes dos Santos, 10 de abril de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário