A recusa da caridade abre o coração para o domínio da depressão. Aquela aponta na direção da aproximação íntima com o outro; esta, na direção do afastamento.
A caridade é o amor por Deus, amor que o próprio Deus infunde no coração. A depressão, ao contrário, é a recusa de relacionamento com o outro.
Há dois tipos de depressão: a endógena e a exógena. A endógena é devido a causas hereditárias; a exógena, a causas acidentais advenientes.
A depressão exógena pode resultar da incapacidade para lidar com decepção afetiva, dificuldades financeiras, perda do vigor físico por doença ou acidente e assim por diante. Esta é “depressão psicológica”, enquanto que a endógena (hereditária), não.
Diz-se que algo é “psicológico” quando a pessoa é livre para decidir. Se a pessoa sofre uma frustração amorosa e se deixa deprimir ao ponto de perder o comando da própria vida, é porque ela assim decidiu. A depressão endógena não deixa escolha; a psicológica, sim.
Há, pois um denominador comum entre a depressão e a caridade: a vontade livre, que pode recusar ou aceitar uma ou outra. Se a pessoa recusa a caridade, isto é, recusa o serviço em favor do outro, ela, no mesmo ato, recusa o relacionamento com o outro – ela aceita o que é o conteúdo mesmo do conceito de depressão, “recusa do contato com o outro”.
Pelo fato de a alma poder afirmar a recusa do contato com o outro, quando a pessoa sente o insuportável desta situação, vai para o extremo oposto: enxerga no outro um meio eficiente para realizar o seu interesse. É o que se chama de “mania”: a pessoa, no íntimo, não tem interesse no contato com o outro mas precisa do outro para realizar seus objetivos. Uma pessoa assim consegue euforizar as pessoas e fazê-las se comportarem de maneira irresponsável; são capazes de fazerem as pessoas tomarem decisões que ofendem ao bom-senso; são capazes de fazê-las “brigar” pelo que, na verdade, as prejudica. Este tipo de característica é visível em criadores de seitas: conseguem tornar seus seguidores tão apaixonados por sua “liderança”, envolvê-los com o seu “carisma”, que só indivíduos realmente sinceros conseguem escapar desta espécie de dominação psíquica. Infelizmente nem sempre ocorre de a maioria dos seguidores perceberem isso a tempo de evitarem grandes males para suas vidas, tanto materiais quanto espirituais.
A caridade também tem a ver com vontade. Ela é uma graça de Deus e não resultado do esforço do homem, como é o caso das virtudes naturais. Porém, como toda graça de Deus, o homem é livre para recusá-la ou aceitá-la. De modo que o homem recusa ou aceita tanto a caridade quanto a depressão.
O hábito da prática da caridade é o antídoto por excelência contra o domínio da depressão.
Os Evangelhos descrevem com fartura condutas de Jesus que ilustram o que é caridade. Talvez por causa da suavidade com que Deus concede Suas graças, nem sempre fica visível à primeira vista quão excepcionais elas são. Um só exemplo por ora é suficiente para isto ficar claro. Recordemos o episódio quando João Batista enviou seus discípulos para Jesus para lhe perguntarem se Ele era o Messias ou se deviam aguardar a vinda de um outro. Ao invés de Jesus simplesmente dizer que era Ele o esperado, citou várias coisas que Ele e somente Ele ia fazendo: “os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciado o Evangelho” (Luc. 7, 22).
À primeira vista parece que o último testemunho da messianidade de Jesus aos discípulos de João Batista, o anúncio do Evangelho aos pobres, é coisa banal. Mas não é. Para percebê-lo, é suficiente notar que se há uma frase capaz de resumir o ensinamento total dos Evangelhos é “Deus é amor” (I Jo 4, 8).
O nome “amor” presume, necessariamente, duas pessoas. É um nome que contém dentro de si a noção de “dois”: uma pessoa diante de outra, amando-a. Quando digo que “amo tal coisa”, estou usando uma figura de linguagem; estou enfatizando que meu interesse é “quase tão intenso” quanto é naturalmente intenso o sentimento que só posso sentir por outra pessoa. Porque o nome amor significa uma pessoa diante de outra, amando-a. Ora, quando o evangelista diz “Deus é amor”, afirma algo que ninguém até então, desde os mais sapientes mestres e doutores ousaram afirmar porque não lhes era possível sabê-lo.
Ao longo dos séculos e milênios, foram-se acumulando saberes a respeito de Deus: que não pode haver dois mas somente um; que Ele é onipotente, onisciente, incriado; que Ele é a sabedoria; que todas as coisas existem só porque Ele existe e a todas sustenta; e assim por diante. Mas todo este acúmulo de conhecimento afirma conhecimento de Deus a partir dos efeitos, isto é, afirma conhecimento que resulta da dedução do que Deus é por causa de efeitos observáveis de Sua ação. Trata-se de conhecimento de Deus “desde fora” (ad extra), conhecimento que é possível ter de Deus “vendo-O” desde fora, “vendo-O” a partir dos efeitos do que Ele fez, faz e é capaz de fazer sempre. Mas quando o evangelista diz “Deus é amor”, não está se referindo ao conhecimento de Deus “desde fora”, mas “desde dentro” (ad intra). Porque o conhecimento de Deus “desde fora” é o conhecimento que o homem atinge porque as coisas existem. Por este tipo de conhecimento de Deus, pode-se dizer que ele tem amor – tem amor pelas criaturas, pelo que criou, mas não que ele é amor. Pode-se dizer que ele é maximamente poderoso ou onipotente, pois só quem é tal poderia criar coisas de tamanho tão díspares quanto são os tamanhos da terra, dos planetas, das estrelas, das galáxias; e também criar vida inteligente num planeta que é um menos que um grão de areia se comparado com estrelas enormes como Betelgeuse ou Aldebaran. De todas essas coisas é possível deduzir: Deus é onipotente; Deus tem amor; Deus sabe tudo, é onisapiente e assim por diante. Mas e o fato de Deus ser amor? Sendo Ele de fato amor, por que nenhum sábio o disse? Por que nenhum filósofo atingiu tal conhecimento? A resposta é: porque só é possível saber isso diretamente e não por dedução. Tudo que se pode saber por dedução (pela aplicação da capacidade para raciocinar), o homem é capaz de saber. Mas há coisas que só podem ser conhecidas diretamente; para estas, a razão é impotante. Daí que saber que Deus é amor só é possível para o próprio Deus. E por isso somente o próprio Deus é capaz de fazer o milagre de tornar isso conhecido por alguém, pois como é sabido, “ninguém dá o que não tem”.
A pujança do milagre de conhecer que “Deus é amor” mostra-se em sua tremenda força quando a menor das criaturas no aspecto social, intelectual, cultural, etc. – o pobre – é elevada a este conhecimento. Porque o pobre vive um tipo de vida que força sua mente a dedicar-se a coisas “práticas”, diretamente relacionadas com o comer, o vestir e o morar; ele não tem tempo para ficar especulando a respeito de coisas abstratas, que não garantem a sobrevivência física. De que adianta ele saber que o tamanho do sol é mais do que mil vezes o tamanho da terra? Que o tamanho de aldebaran é mais de mil vezes o tamanho do sol? Que os sentidos são distintos do intelecto? Nenhum desses conhecimentos é “prático”. Nada disso enche a panela de feijão ou de arroz. Mas é aí que surge o milagre: aos pobres, Deus ensina o que passou oculto à mente dos sábios e doutores, cujas vidas são dedicadas à investigação das causas supremas das coisas. “Deus é amor”: este é um conhecimento que só Deus possui e, porque Ele o possui, pode dá-lo a quem quer e Ele o dá aos pobres, quer dizer, faz com que os menos capacitados para conhecerem o que quer que seja, conheçam o que os mais capacitados a conhecerem o que quer que seja nunca conheceram! Ensinar ao homem que um dos nomes de Deus é “caridade” – pois a informação “Deus é amor” pode ser dita “Deus é caridade”– é realizar um supremo milagre, talvez maior do que os que o precedem: cego ver, coxo andar, morto voltar à vida...Caridade é o nome do amor por Deus. Se amo meu filho, minha mulher, os sacerdotes através dos quais ingressei na Igreja pelo Batismo, pela Crisma, etc., este sentimento chama-se amor. Se o amor que sinto é por Deus, o nome deste sentimento não é amor, porém, caridade. A diferença entre um e outro é que, no caso dos primeiros, meu coração se move a eles porque deles eu gosto; no segundo caso, não preciso gostar daqueles a quem faça o bem. No mais das vezes o amor cultiva a esperança de reciprocidade; a caridade, não.
Amor, caridade...são termos duais, presumem, no mínimo, duas pessoas. É o que liga essas duas pessoas, uma à outra. Portanto, a virtude da caridade é a garantia imorredoura de que o homem nunca esteja só. Sobre o primeiro pai, Deus o olhou e disse “não é bom que o homem esteja só” (Gên. 2, 18), com isto ficando significado que, por uma questão de estrutura, de constituição (de “matriz”, como se diria hoje em dia), a estrutura psicológica do homem exige que ele se relacione com um outro igual a ele. Jesus, por pura caridade, introduziu um novo elemento na estrutura do ser: o homem, por meio de uma graça de Deus, pela graça da caridade, é elevado a uma condição tal que se torna capaz de estar na companhia não somente do igual a ele, um outro ser humano, mas na companhia do desigual a ele, isto é, na companhia de Deus. Porque a caridade é uma virtude (ou vocação) sobrenatural e é dom de Deus, isto é, o homem não a possui por causa de algum mérito, mas tão somente por causa da misericórdia de Deus.
A diferença entre amor e caridade pode ser assim exemplificada: um filho adoece e sua mãe deseja ardentemente que ele sare e no seu coração existe a disposição de dar sua vida por ele. Suponha que isto signifique doar-lhe o próprio coração. De bom grado ela é capaz de fazer isso, tamanho o amor que sente por ele. Mas ao fazer isso – digamos que ela o faça – ela morre, pois dar-se ao ele significa sua morte. Mas a caridade, que é o amor por Deus, possui outra característica: se morremos por Deus, na verdade, o que conseguimos com isso é a vida em sua expressão plena. De modo que o extremo do amor humano, natural, pode ser a morte; mas o amor de caridade é a vida e a garantia da posse de um corpo que não mais morre. Pois ela não é algo do homem para Deus, mas sim algo que Deus oferece ao homem para que este a ofereça a Ele.
E a depressão, o que é? É o desejo de afastar-se do outro! A pessoa deprimida, no sentido patológico do termo, deseja afastar-se permanentemente do outro. Este desejo de afastar-se do outro, no deprimido, pode assumir tamanha força que ele acaba suicidando, tão logo tenha força para tanto. Este infausto acontecimento ocorre quando a pessoa deprimida começa a sair deste estado e ir para o seu oposto, para o estado de mania. Nessa hora, faltando motivo para viver – faltando a caridade – o infausto acontece: suicídio.
Com relação ao tempo, a fé se analoga ao passado, a esperança ao futuro. A caridade, ao presente, pois é no presente que a vontade atua concretamente. A caridade impele a vontade ao bem verdadeiro, sem que entre em questão a clareza da fé ou a firmeza da esperança.
Mais coisas há para dizer sobre a caridade, o que ainda será feito.
Joel Nunes dos Santos, em 20 de janeiro de 2011.
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