O oposto da esperança é a falta de pudor, a negação prática de que o corpo do homem seja o “templo do Espírito Santo” (I Cor. 6,19).
Todo sofrimento é suportável quando nele se vê algum sentido. O contrário também é verdadeiro: qualquer pequeno sofrimento ou frustração é insuportável quando não se encontra sentido para eles. A virtude da esperança manifesta-se com maior clareza na vida dos que sofrem e, contudo, não perdem a fé ou a alegria de viver, por haver o sentimento de que o futuro aguarda o encontro com o Autor de todas as graças.
Vale considerar que cada uma das virtudes teologais, também ditas virtudes sobrenaturais, possuem analogia com o curso do tempo. A fé nos remete ao passado, a esperança ao futuro e a caridade ao presente.
O passado a que a virtude da fé remete não é um passado qualquer, mas um passado que está vivo aqui e agora, como se presente fosse. Este é o passado a que Jesus denominou “memória”: “fazei isto em memória de mim”(Luc. 22, 19), ao investir os do primeiro Colégio Apostólico do poder de consagrar o pão e o vinho (poder não concedido nem a Maria ou aos anjos ou a qualquer outra criatura, mas somente ao sacerdote). Quando o sacerdote consagra o pão e o vinho, ele não está simbolizando algo, no sentido de relembrar, no presente, gestos que se deram no passado. Não. Ele está repetindo algo cuja força e valor é a mesma que da primeira vez. O que se deu no passado repete-se, agora, no presente; é o mesmo corpo e sangue que se faz presente – é o mesmo Deus feito homem que se faz presente. Ora, remetendo a fé ao passado, pois ela conforma nossa alma àquilo de que tivemos notícia e não vivemos pessoal e fisicamente, a sua perda significa a perda da capacidade para “apropriar-se” do seu conteúdo. Eu, assim como todos os atualmente vivos, não estávamos fisicamente presente no Calvário, mas, pela fé, mergulhamos neste acontecimento e então o vivemos como presente, onde deixa de ter importância nossas próprias dores e preocupações e importa apenas nos unirmos ao sofrimento de Cristo. Na hora em que assim fazemos, os séculos e milênios desaparecem e então experimentamos a familiaridade própria do acontecimento que não soa como algo passado, mas como experiência vivida no presente. Perdendo a fé, todo este “ultrapassamento do tempo” perde o sentido e a única coisa que importa é o que mais me dá a certeza de presente, que é o meu próprio corpo, a minha própria vida. Então, quem momentaneamente tiver poder sobre a minha vida se torna, de certa maneira, dono da minha alma. A perda do poder sobre a própria alma recebeu o nome de Síndrome de Estocolmo, da qual se tratou no artigo anterior.
Assim como a perda da fé significa a perda (ou abandono) do passado que a vivifica, a perda da esperança provoca o descaso quanto ao futuro; não de qualquer futuro, mas daquele que guarda íntima conexão com o conteúdo da fé.
A esperança é a expectativa pelo que ainda não se deu mas vai se dar no futuro.
A Igreja, no Catecismo, diz que “A virtude da esperança corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o homem” (CIC 1818).
A maior felicidade que o homem pode almejar é a bem-aventurança. Jesus assim a definiu: “a vida eterna consiste em que conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste”. Realizar a máxima felicidade, que é conhecer Deus, requer do homem que ele possua as “vestes adequadas”. As “vestes adequadas”, o próprio Cristo mostrou qual seja, fazendo-o baseado no conhecimento exato da natureza da inteligência humana: nada chega ao espírito, à inteligência do homem, que não tenha antes estado em sua alma através dos sentidos físicos (visão, audição, olfato, paladar e tato): ressuscitou e mostrou-se em corpo glorioso, o qual conserva a aptidão para repetir tudo que podemos fazer com nosso corpo mortal que a cada dia que passa fica mais fraco e pior; mas também manifestou a capacidade para fazer coisas fora das limitações do tempo e do espaço. Após ressuscitar, Jesus aparecia onde queria; ao mesmo tempo que conversava e ceava com aqueles a quem permitia vê-Lo, agia fora dos limites tempo-espaciais a que todas as criaturas corpóreas estão sujeitas, entrando em locais cujas portas estavam trancadas, desaparecendo de um lugar e surgindo em outro, tal como os Evangelhos relatam.
Ora, Deus se fez homem, morreu (enquanto homem), ressuscitou e assumiu corpo com propriedades sobrenaturais, prometendo algo de uma maneira só Deus pode prometer. Nós, homens, quando prometemos algo a alguém, dando a ver que no futuro esta ou aquela coisa se dará, o fazemos por escrito. Deus faz diferente: ele dá um jeito de mostrar-se pessoalmente (como fez ao tornar-se homem) ou através desta ou aquela criatura, sozinha ou em conjunto. E foi o que fez: ressuscitou e assumiu corpo humano definitivo, glorioso, de maneira que ficasse o que o futuro aguarda aos que conservarem a esperança no que Ele prometeu. Ora, se Deus, ao se fazer homem, fez questão de mostrar-se em corpo glorioso, dentre os diversos motivos que teve para fazê-lo, indubitavelmente um deles é acentuar a importância do corpo, da castidade que é necessário ter com relação a ele. Numa palavra, acentuar o valor do pudor.
Talvez o traço característico da virtude da esperança seja o pudor e também a tolerância aumentada ao sofrimento, ao desconforto físico e psicológico.
Um bom exemplo de santidade fornecido pela Igreja, para ensinança dos fiéis, é o de de Santa Rita de Cássia, cuja vida, em poucas palavras, pode ser assim resumida:
Santa Rita de Cássia viveu vida que foi um permanente convívio com situações e problemas insolúveis, daí ser distinguida com o carisma da “santa das causas impossíveis”.
Viveu numa época e região em que até a fé católica não tinha cravado raízes suficientes que permitissem ver a mulher pela perspectiva devida, como se ainda não tivesse ficado claro que uma mulher, Maria, Deus a elevou acima de todos os anjos! Nasceu em 1381 e faleceu em 1457, vivendo 76 anos permeados de constantes sofrimentos. Casou-se aos 16 anos com homem que seguia o costume local de bater na mulher e o mal costume de meter-se em jogatinas, perder e ficar endividado com agiotas. Com ele teve dois filhos com temperamentos saídos aos do pai. Seu marido, espancado por credores de jogos de azar, foi largado numa cova acreditado já morto pelos agressores. Rita largou tudo e o recolheu à casa e dele tratou, com tamanho desvelo que aquele homem bruto e cheio de maus costumes, ao voltar a si dos maus tratos, comoveu-se com a santidade da mulher e tornou-se o primeiro devoto daquela que foi declarada santa assim que morreu. Os seus dois filhos, ao entrarem na adolescência, idade em que a criança cede lugar ao jovem que é capaz de praticar ações irreversíveis, passaram a manifestar a má índole já observada no pai. Rita pede a Deus que, caso arrisquem perder a alma, que Deus os leve antes que isso aconteça. Para espanto dos circunstantes, ao caírem doentes, ela deixa tudo e passa a cuidar deles. “Se pediu que Deus os levasse, por que cuida deles?” era a pergunta que pairava na mente das pessoas. “Se Deus os quiser levar, que Ele o faça. Porém, sou mãe e vou tentar impedir que eles morram com todas as minhas forças”, foi sua resposta. Morreram.
Viúva, sem filhos, sem dote ou qualquer garantia material suficiente para poder ser aceita em qualquer convento, resolveu consagrar-se à vida religiosa. Após uma sucessão de milagres, conseguiu entrar no convento. Sua superiora não acreditou nela e deu-lhe tarefa que a fizesse desistir da vida conventual: regar graveto de pau que em breve seria jogado no fogo. Regou. O graveto vicejou e deu flores – rosa, para ser mais específico. Mais à frente comoveu-se com um sermão e pediu a Jesus que lhe permitisse compartilhar de seu sofrimento, no que foi atendida: um espinho saiu da coroa de Cristo e cravou-se em sua testa, provocando dores atrozes e fétida ferida. Tudo isso fez com que sua vida fosse o resumo do que rezamos para que Deus nos livre: ser espancada pelo marido, ter filhos de má índole, tratamento pouco amigável e até hostil da autoridade constituída, ferida dolorosa e fétida na testa... Tudo isso, nos dias que correm, seria o bastante para grande número de pessoas perderem o gosto pela vida. Por menos que isto há pessoas que suicidam, rápida ou lentamente, pondo fim à própria vida com uso de meios violentos ou então entregando-se a vícios diversos. Mas algo animava esta mulher: a virtude da esperança, que secundava sua fé. Nesta virtude se firmou, de modo que ainda que impedida de conviver com quem quer que fosse – possuía ferida com mal aspecto e fétida – não desanimava da esperança de encontrar-se com o seu noivo, com Deus feito homem, na glória...
A fartura de milagres associados à santidade de Rita vai desde a conversão de marido de má índole até a fenômenos como o surgimento, em sua morte, de uma espécie de abelha até então nunca existente e que só há naquela parte do mundo onde estava localizada sua cela.
Santa Rita de Cássia tipifica a vida de pessoas cujas condições materiais e físicas impedem condutas visíveis e vistosas como aquelas que a fé engendra (como a das crianças de Fátima ou dos do primeiro Colégio Apostólico citados no artigo anterior) e, também, daquelas que acentuam aos olhos de terceiros a virtude da caridade. Santa Rita não viveu disputando com incrédulos, mas viveu num ambiente onde as pessoas, de certa maneira, estavam acostumadas com sofrimentos que só deixou de afetá-los depois da manifestação de sua santidade. Marido bater em mulher não era visto como acontecimento excepcional, mas uma espécie de costume a que as pessoas já estavam acostumadas. Esse como outros tipos de sofrimentos que já não provocavam comoção nas pessoas, foram paulatinamento desaparecendo em virtude da conservação da alegria de viver e até jovialidade por parte desta santa, cuja fétida ferida na testa impedia até as pessoas que dela gostavam de se aproximar. Sua vida reuniu um conjunto de experiências capazes de deprimir ou provocar os mais diversos tipos de revoltas psicológicas e espirituais de que a sociedade contemporânea é tão pródiga em exemplo. A tudo ela resistiu, dando acento na firmeza da virtude da esperança.
Tamanho era o pudor manifestado por esta santa que, antes de morrer pediu perdão às irmãs por lhes causar constrangimento. Que constrangimento? O de ser presença desagradável, devido à má aparência e mau odor da ferida na testa. Ela pedia perdão por algo de que sequer tinha culpa, como se fosse por falta de pudor que constrangia até às que lhe levavam alimento sem poderem conviver com ela!
A deformidade dos costumes, visível na falta de pudor, é a marca mais evidente da perda da esperança, do desejo de um dia encontrar com o “noivo”, com Jesus-Deus. Esta tipo de falência do espírito, a perda da esperança, leva a que muitos repitam o pecado de Herodias e Salomé, que urdiram vingança e provocaram a morte de São João Batista, de quem Jesus disse: “Entre os nascidos de mulher, não há maior que João [Batista]” (Luc. 7, 28) O despudor de Herodias e de Salomé são típicos de corações onde está ausente a esperança de um dia encontrar-se cara-a-cara com Deus.
Joel Nunes dos Santos, em 15 de janeiro de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário