domingo, 2 de janeiro de 2011

A Vocação Sobrenatural - I

As vocações naturais constituem as expressões superiores e acabadas das “partes da alma”, tal como descritas na obra Ética a Nicômaco de Aristóteles, comentadas por Santo Tomás de Aquino. Não porque seja a inteligência que comanda a vocação, mas porque a inteligência vai melhor quando a serviço da vocação. A inteligência, sozinha, desvinculada do apelo vocacional, promove o erro, a tristeza e infelicita a vida.

Na obra citada, explica o Filósofo que a alma humana possui 3 níveis, o mais superior sendo a parte puramente racional, a intermediária, racional por participação e a inferior, a parte irracional, que se divide em irascível e concupiscível. A parte superior da alma recebe o nome de razão; a intermediária, vontade, que é dita “racional por participação” uma vez que o homem, através dela (capacidade de tomar decisões) é livre para escolher entre fazer e amar o bem ou o mal. Quando o homem escolhe fazer e amar o bem é porque “participa” da reta razão; quando escolhe deixar-se conduzir pela comida, bebida e sexo, e por isso desregra a vida, é porque escolheu virar as costas à razão.

A expressão “nível irracional da alma” é usada para esclarecer que nem a razão nem a vontade têm controle sobre o conteúdo desta parte da alma, mas somente sobre o comportamento que ela provoca ou pode provocar. Assim, o homem pode não ter controle sobre si de tal modo que não sinta raiva; mas isto não significa que ele não possua controle sobre as ações que a raiva poderia provocar. A raiva em si mesma pode não ser eliminada – ela faz parte da estrutura psicológica do homem; mas a força interior (“virtude”, que significa “força”) para controlá-la existe e ela tem de ser exercitada constantemente para poder tornar-se capaz de evitar os comportamentos e os danos que ela pode provocar. Do mesmo modo que para dominar a raiva, o homem deve educar-se e desenvolver virtudes que lhe permitam ser senhor dos próprios desejos, cujos principais, além da raiva, se referem à comida, à bebida e ao sexo (que estão na raiz do interesse desmedido pelo poder e pelo dinheiro).

Tanto as virtudes cardeais (prudência, temperança, fortaleza e justiça) quanto as vocações naturais se desenvolvem e aprimoram pela educação. Aliás, o objetivo principal da educação é fazer surgirem homens prudentes, temperantes, corajosos e justos. De modo que uma educação contrária a essa meta – como a que vem sendo implantada principalmente nas nossas escolas públicas – gera resultados contrários, fazendo surgir homens insensatos, não confiáveis, inclinados à corrupção de todo tipo, à injustiça, etc..

A educação que desenvolva e fortaleza as virtudes cria condições para o desenvolvimento das vocações naturais, filosófica, científica, artística e altruística. E quanto mais seja possível o desenvolvimento facilitado das vocações naturais, mais oportunidades surgem para a manifestação da vocação sobrenatural, sob todas as suas formas.

Assim como as vocações naturais possuem semelhança com as virtudes naturais, a vocação sobrenatural possui semelhança com as virtudes sobrenaturais: fé, esperança e caridade. A vocação sobrenatural não resulta da educação, mas é infundida diretamente por Deus no homem. Do mesmo modo que há as virtudes naturais e as virtudes sobrenaturais, há as vocações naturais e as vocações sobrenaturais, ainda que seja discutível se são três ou uma só. Para o propósito de esclarecer a diferença entre umas e outras, vale considerar estas últimas como sendo três.

Diferentemente das virtudes cardeais, que se desenvolvem e aprimoram pela educação, as virtudes infusas não resultam de qualquer procedimento pedagógico, mas são infundidas diretamente por Deus no homem. O homem não desenvolve a fé por causa desta ou daquela educação, mas sim por infusão deste dom por Deus, graça essa dispensada por Deus a todo homem. Algumas pessoas viram as costas a tal graça, não havendo educação ou esforço dos pais que mudem isso, o mesmo valendo para as duas outras virtudes sobrenaturais, a esperança e a caridade.

Um meio social saudável, que acolha os mandamentos de Deus e da Igreja facilitam a emergência de um maior número de pessoas dotadas dessas virtudes sobrenaturais, na medida em que a ausência de exemplos de vida negativos diminui a chance de desvios. Hoje em dia o esforço de muitos governos e governantes se dá no sentido de dificultar não somente o desenvolvimento das virtudes cardeais quanto das sobrenaturais, uma vez que são incentivados os vícios contra a moral, a fé, a esperança e a caridade.
As vocações sobrenaturais manifestam-se de maneira mais nítida na vida dos santos, razão por que a Igreja os dá como exemplo a serem imitados. Há santo cuja vida se caracteriza pelo testemunho eloqüente que dá da virtude da fé, outro da esperança e outro da caridade.

Os santos que dão testemunho da fé são aqueles que demonstram coragem absolutamente acima do que a simples educação baseada nas virtudes cardeais poderia proporcionar. São homens e mulheres que “batem de frente” contra a iniqüidade e pessoas iníquas, chegando até ao martírio. São torturadas, atacadas violentamente e não ofendem aos agressores mas os perdoam e não negam uma vírgula da fé que abraçaram.

Os santos que testemunham com suas vidas a esperança o fazem através da tolerância humanamente inexplicável ao sofrimento, com preservação da capacidade de amar e perdoar ao próximo. Se Elias é o modelo do testemunho da fé, Jó é o testemunho da esperança, bem como Santa Rita de Cássia.

Testemunham a caridade os santos cuja vida não raro se dão de maneira quase anônima. Talvez isto seja assim porque o próprio nome “caridade” significa “amor por Deus” e esta virtude impele o homem à renúncia de si com tal intensidade que ele próprio desaparece e só o bem de que é causa se manifesta. Somente o mal precisa do bem para dar-se; o bem não precisa do mal para dar-se, o que faz com que o bem seja no mais das vezes parte tão permanente e integrante da vida, como o ar que respiramos, que ele acaba deixando de ser percebido. Quando o bem impera, não costuma chamar a atenção, ainda mais quando se trata do maior de todos os bens, a caridade. Por exemplo, existe acontecimento mais auspicioso e demonstrativo da caridade do que a Encarnação de Deus? No entanto, a quase totalidade dos livros de história, dos livros escritos pelos “bem intencionados” benfeitores da humanidade se esquecem de mencioná-lo. Falam do bem ao próximo, da necessidade de distribuir riquezas, etc., mas tudo num cenário histórico onde não ocorreu a humanização de Deus e a divinização do homem. Pois é um bem tão imenso e inimaginável que não chama a atenção mesmo dos mais argutos pensadores.

Exemplo de santo que testemunha a caridade é São José Maria Escrivá, criador do Opus Dei, Obra que constituiu a primeira prelazia pessoal na história da Igreja. É obra que inaugurou de maneira sistemática a possibilidade de emergência de santos oriundos do meio mais hostil à santidade, o mundo do trabalho, a faixa social ocupada pelos trabalhadores assalariados. A difusão do bem que os associados desta Obra promovem é de tamanha vastidão que passa despercebida aos olhos da maioria, razão porque indivíduos mal-intencionados e intelectualmente desonestos propagam as maiores sandices sobre estes servidores da Santa Madre Igreja. Para quem conheça o “ambiente operário”, onde a única coisa que importa é o desempenho de tarefas não raro sem sentido para quem as executa, consegue imaginar a dificuldade para se tratar de assuntos relativos à vida eterna e à salvação da alma. Nesses mesmos o que prolifera são os exoterismos de todos os tipos, ocultismos, astrologias e outras práticas adivinhatórias. Contudo, graças às características da santidade daquele fundador, abriu-se possibilidades de santificação de vida para pessoas que ao longo dos séculos disso estiveram privadas. Um exemplo, para mim fortíssimo, que chamou minha atenção para o sentido de caridade que move os numerários desta prelazia é a promoção de cursos de formação extra-curricular em faculdades de Medicina, onde costuma imperar doutrinas fundadas no ateísmo e no desprezo da religião. Não são poucos os formandos de medicina que ouvem falar do comprometimento de sua arte de curar com a caridade, com as boas novas do Evangelho por causa da coragem de alguns de tais associados, também eles ou médicos ou estudantes de medicina. Quem já tentou falar de Deus em alguma faculdade sabe muito bem a que estou me referindo; ainda mais quando o Deus de que se fala é tal como ensinado pela Igreja. A hostilidade, neste caso, é centuplicada.

Pois bem, devido às limitações da mente do homem, o bem se torna conhecido através do testemunho contrário; o homem consegue conceber o bem ao horrorizar-se com o mal que testemunha. E há três males atualmente muito comuns que são o inverso do que as vocações sobrenaturais testemunham.
Os três maiores males, doenças do espírito, que assolam grande parte da humanidade atual são os flagelos denominados “Síndrome de Estocolmo”, “falta de pudor, que se acompanha sempre de promiscuidade” e “Depressão”. Esta resulta da falta de Caridade, a anterior, da perda da Esperança e a primeira, da perda da Fé.
Para não alongar este artigo, vou ater-me ao primeiro flagelo, a “Síndrome de Estocolmo”, deixando para o artigo seguinte os demais flagelos, a “falta de pudor” e a “Depressão”.

A Síndrome de Estocolmo (que ocupa no espírito do homem o lugar que deveria ser ocupado pela fé) caracteriza-se pela mutação da inteligência da pessoa provocada pelo temor de morte. Pessoas seqüestradas, ao serem libertadas, não raro falam bem e defendem o quanto podem de seus seqüestradores e discursam contra seus libertadores. Exemplos públicos desta conduta pôde-se ver quando da libertação da filha do empresário Sílvio Santos, do empresário Abílio Diniz, dono da rede “Pão de Açúcar”, do bispo de Recife das mãos do chefe do crime local e diversos outros casos que a mídia noticiou a fartar.

A explicação do fenômeno da mutação da inteligência que ocorre nessas circunstâncias é a seguinte: a vítima (o seqüestrado), constatando que seu algoz pode matá-la a qualquer momento, regride a uma condição psicológica infantil e tenta tornar-se “boazinha” com ele, de modo que o comova e o faça mudar de idéia e tratá-la bem. O medo se torna tamanho que a alma da vítima fica tão impactada que, ao sair daquela situação, ao ser libertada das mãos do seqüestrador, permanece ainda afetivamente ligada a ele e então procura defendê-lo por todos os meios, tanto discursando a seu favor quanto levando-lhe comida na cadeia e mesmo pagando-lhe bons advogados.

O nome “Síndrome de Estocolmo” foi usado pela primeira vez em 1975, quando um bandido, armado de metralhadora, entrou no banco Sverides, na cidade de Estocolmo, Suécia, e fez os funcionários de reféns durante quatro dias. A polícia convenceu o bandido a se entregar e libertou os reféns. Estes, aliviados pela soltura, cotizaram e não somente levavam boa comida para o bandido preso como também pagaram o melhor advogado que conheciam para defendê-lo. Psicólogos, psiquiatras, sociólogos, antropólogos e demais categorias que labutam no estudo do temperamento, caráter e personalidade do homem perceberam a estranheza do fenômeno e lhe deram o nome com o qual ficou conhecido: Síndrome de Estocolmo. “Síndrome” significa “conjunto de sintomas”; Estocolmo porque foi nesta cidade onde pela primeira vez se constatou esta fortíssima mutação da inteligência, que transforma (na mente da vítima) o mal em bem e o bem em mal.

Um testemunho da força da virtude sobrenatural da fé, como defesa sobrenatural contra a emergência da Síndrome de Estocolmo pode ser observado nas três crianças de Fátima, Lúcia, Jacinta e Francisco. Na época, estavam com 7, 9 e 10 anos. Foram seqüestradas pelas autoridades públicas da cidade e mantidas isoladas umas das outras, que as ameaçaram com o que de pior as crianças da região poderiam imaginar: seriam lançadas dentro de um recipiente de óleo fervente, tal como era representada a condição dos condenados ao inferno. Ora, a Síndrome de Estocolmo instala-se justamente porque a vítima imagina as atrocidades que o seqüestrador pode fazer com ela, uma vez que é evidente que este tem todo o domínio da situação. Crianças na faixa etária das crianças de Fátima são mais impressionáveis, uma vez que quanto mais novo é o ser humano, mais intensa é a resposta global do seu organismo tanto a alegrias quanto a temores. Como a imaginação da criança não possui ainda os freios que só irá adquirir muitos anos depois, palavras com conteúdo assustador surtem sobre elas efeitos mais intensos do que agressões físicas sobre pessoas adultas. Daí não haver explicação natural para as crianças de Fátima terem saído incólumes da assustadora experiência por que passaram. Não somente as autoridades policiais procuraram assustá-las prometendo-lhes fazer nesta vida o que estava reservado às que vão para o inferno como também as trancafiaram junto a prisioneiros adultos. Sós, prisioneiras entre presidiários, afastadas de seus pais e mães e de qualquer outro parente ou figura protetora, o que fizeram? Tornaram-se “boazinhas” com seus seqüestradores, com as autoridades públicas que as trancafiaram? Negaram a verdade e aderiram à mentira? Negaram terem visto e ouvido o que viram e ouviram? Saíram de lá falando bem dos seqüestradores, justificando-lhes os motivos? Nada disso. Com a firmeza da fé inabalável, ajoelharam e rezaram; e o fizeram de maneira tão santa, pura e comovente que até os prisioneiros que lá estavam rezaram com elas. Saíram de lá comportando-se de maneira oposta aos afetados pela Síndrome de Estocolmo: se esses se tornam apologistas e defensores dos seqüestradores e algozes, aquelas crianças de lá saíram afirmando o mesmo pensamento e sentimento que possuíam antes de lá estarem: “aquela Senhora” falou com elas e disse que ia continuar falando nos meses seguintes. Não trocaram o bem pelo mal, a verdade pela mentira, a fé pela Síndrome de Estocolmo.
De modo que a Síndrome de Estocolmo, um dos três maiores e piores flagelos da atualidade é o que se instala no espírito do homem que perde a fé.

No próximo artigo tratarei da perda da Esperança e da Caridade, sobre que flagelos são seus opostos diretos.

Joel Nunes dos Santos, em 26 de dezembro de 2010

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