sábado, 25 de dezembro de 2010

Vocação, Trabalho e Profissão

Não se deve confundir vocação com profissão. Antes da profissão há o trabalho; antes deste, a vocação. Da vocação surge o trabalho; do trabalho, a profissão.

Trabalho é o nome que se dá ao conjunto de operações mentais e ações físicas que o homem reúne para atingir o resultado planejado. Este resultado, no fim das contas, coincide com o que caracteriza cada uma das quatro vocações naturais: no aumento e firmeza de algum conhecimento especulativo; na maior capacitação para agir de maneira prática; na criação de arte ou de vínculo mais forte entre pessoas. Claro que um mesmo trabalho pode resultar em algo que manifeste duas, três ou as quatro possibilidades. Ou seja, o trabalho pode resultar em algo que alimente a vocação filosófica, científica, artística ou altruística.

O trabalho, ou esforço orientado para um objetivo previamente definido imita, numa escala material mais abrangente, condutas que se originam na família. Por exemplo, quando os pais atendem às necessidades da criança, fornecendo-lhe alimento, aconchego, ternura, vestimentas, tudo isso costuma ser feito temperado com atenção carinhosa e carregada de sentimento. Para agirem de maneira eficiente e em bem da criança, é necessário que dialoguem e se rendam às reais prioridades uns dos outros, o pai da mãe, a mãe do pai e ambos da criança. O diálogo é como que o exercício, em família, do que fora da família e de maneira exclusiva constitui a atividade filosófica, cuja definição é “amor pela verdade”. A prática do diálogo entre os pais melhora a habilidade de ambos não somente para planejar como também para agirem de maneira prática. Ao agirem com vistas a solucionarem dificuldades reais e assim poderem atender às necessidades da criança, fazem numa escala familiar aquilo que, fora da família e tornada atividade exclusiva, recebe o nome de ciência. A ciência se distingue da filosofia na medida em que esta especula sobre as causas das coisas para compreendê-las e aquela, para replicá-las, para desencadear efeitos sensíveis.
Mas a coisa não pára por aí. Além do diálogo (a parte “filosófica” do convívio do casal) e das ações práticas (a parte “científica”), há que haver beleza e compaixão. A beleza se manifesta tanto pela relação repeitosa do pai para com a mãe e vice-versa, bem como pelos cantos que a mãe entôa para embalar o sono da criança, ou através da modulação que provoca na própria voz para preencher de sentido carinhoso as palavras que lhes dirige. A compaixão se manifesta pelo hábito de abrir mão das próprias preferências em favor do bem do outro: o pai da mãe, a mãe do pai e ambos da criança. Quando tais atitudes são praticadas fora do âmbito familiar, elas se convertem no que recebe o nome de arte e altruismo.
Assim, no cuidado familiar da criança, a qual é amada mesmo antes de nascer, observam-se os traços distintivos das quatro vocações naturais. Ao crescer e afastar-se fisicamente da família, esta mesma criança irá praticar o que aprendeu em casa, e se tornará tanto mais qualificada nisto ou naquilo quanto mais tenha vivido num ambiente que a ensinou a fazer isto ou aquilo. Se ela cresceu num ambiente onde presenciou o respeitoso e amoroso diálogo entre seus pais, ela acreditará no valor da linguagem e para ela, caso tenha inclinação à reflexão filosófica, encontrará nos estudos desta matéria um dos inúmeros itinerários que a conduzirão ao intenso amor a Deus, o mesmo valendo para as demais áreas do pensamento humano: ciência, arte, altruismo.

O homem, ao trabalhar, resolve problemas – pois é para isso que o trabalho serve: para resolver problemas. Algumas soluções precisam ser repetidas sempre, uma vez que se trate de solução de necessidades permanentes do homem. Por exemplo, os pais alimentam sua criança e se esforçam por dar-lhes os alimentos mais saudáveis. Mesmo que chegue um dia em que não precisarão mais fazer isso, quando a criança não for mais criança e puder fazê-lo por si mesmo, a necessidade de se preservar o conhecimento a respeito de alimentos saudáveis não desaparece, pois novas crianças nascerão. O mesmo se diga a respeito da questão da moradia e da proteção social da criança. Mesmo ao tornar-se adulto, a necessidade de moradia e de segurança social permanecem: é necessário poder garantir a liberdade de ir e vir, bem como o direito de propriedade sobre os bens honestamente adquiridos.
Alguns indivíduos, por inclinação natural, vinculam sua capacidade de trabalho ao atendimento pontual de cada uma dessas necessidades. Há indivíduos que, ao longo da história, vincularam e vinculam sua capacidade de trabalho no aumento do conhecimento a respeito do que mantém ou restaura a saúde física das pessoas. Se os pais mantêm-se vivamente preocupados com isso quando sua criança não pode prover-se por si do alimento que precisa, alguns indivíduos continuam envolvidos afetivamente com esta mesma questão. Da reunião de tais indivíduos é que surge o que se chama profissão. No caso de indivíduos que permanecem interessados na questão do que mantém e restaura a saúde, a profissão que surge é a profissão médica.
Isto é assim porque a profissão é a reunião de instrumentos intelectuais e materiais com vistas à solução de um problema específico. A profissão de médico tem como objetivo a geração da saúde. Ela não tem como objetivo enriquecer seu praticante, nem mesmo lhe fornecer um centavo: tem como objetivo apenas isto, gerar saúde. A engenharia tem como objetivo criar estruturas de suporte, daí ser a ciência responsável pela criança de prédios e pontes. O dinheiro que o exercício de tais ofícios proporciona é resultado indireto – as pessoas pagam por tais serviços porque sem eles a vida física não é possível, razão porque o bom médico, o bom engenheiro... o bom profissional costuma ser bem remunerado. Não é a profissão que é remunerada, mas o profissional. Caso contrário, todo médico, engenheiro, advogado, etc., seriam economicamente ricos.

A vocação inclina o coração a amar esta ou aquela coisa. Amando esta ou aquela coisa, consegue-se transformá-la em bem ou serviço útil para terceiros. Ao transformar algo em bem ou serviço útil para terceiros, esta “fórmula” de ação, este modo de proceder passa a ser repetido por pessoas cujo coração também se inclina ao amor por essas mesmas coisas. A continuidade do esforço para aprimorar a geração deste bem e serviço inclui algumas pessoas e exclui outras, processo que dá nascimento às profissões.

Por isso é razoável concluir que se a pessoa é estimulada, desde criança, a cultivar conhecimentos e ações práticas afins com sua vocação, ela desenvolve mais rapidamente a capacidade do trabalho e, em resultado, se torna apta a encontrar profissão que lhe seja favorável e lhe faculte encaixar-se bem na vida profissional.

De modo que se observa que a profissão é resultado indireto da vocação e resultado direto da capacidade de trabalho do homem.

E isto não poderia ser diferente, pois o trabalho não é maldição, mas graça de Deus. Antes de Deus, por causa do pecado do homem, ter sentenciado que o homem teria de ganhar o pão de cada dia com o suor do próprio rosto, vocacionou-o a fazê-lo, dando-lhe antes capacidade para tudo conhecer. Conhecendo, o homem é capaz de desenvolver os conhecimentos e instrumentos necessários ao cumprimento deste não muito agradável mandamento, que o apóstolo São Paulo recordou ao dizer: “Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer. (II Tess. 2, 10)”

Joel Nunes dos Santos, em 24 de dezembro de 2010.

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