Pergunto: no que pensamos quando vemos uma fruta? Que ela é para ser comida. E quando vemos um animal de certo tamanho nos encarando? Que é melhor correr. E quando vemos um sapo? Que deve ser muito desagradável para ele estar num lugar seco, poeirento e ensolarado.
Assim acontece com as coisas que caem sob nossa percepção: somos tomados por imagens, sentimentos e pensamentos relativamente precisos. Isto é assim porque o mesmo Autor da natureza é o mesmo que criou a inteligência humana e a tornou capaz de concluir idéias que coincidem com a estrutura do mundo exterior.
Pela mesma razão, quando em presença de alguém vocacionado ao que faz, a nossa mente constata a presença de pelo menos duas características evidentes: eficiência e autoridade.
A eficiência do vocacionado é visível mesmo antes de a pessoa ter tido tempo suficiente para aprender a fazer bem o que faz. Por exemplo, observe duas crianças da mesma idade, digamos com 4, 5, 6 anos ou qualquer outra idade, que tenham recebido a mesma educação, criadas por famílias com padrão socioeconômico, psicológico e religioso semelhantes. Suponha que as duas sejam colocadas numa escola de música, sendo que uma é vocacionada a isto e a outra não. A criança vocacionada à música, com um ano ou menos de estudo manifesta competência instrumental e musical muito maior do que alguma outra, não vocacionada, que esteja estudando na mesma escola há cinco, seis anos. Que fator gera essa competência extra, que está presente em uma e não na outra? Este fator é justamente a vocação. Do mesmo modo que aquela outra, que estuda há cinco anos mais que a vocacionada à música, por certo manifestará também desproporcional facilidade (comparada com a vocacionada à música) para alguma outra atividade diferente da música. O fato de uma não ser vocacionada à música não quer dizer que ela não seja vocacionada a nada; quer dizer simplesmente que ela é vocacionada a outra coisa.
A autoridade de cada uma dessas crianças se manifestará nos seus respectivos campos: no domínio da música, a vocacionada será admirada ou invejada pelos demais, o mesmo se dando com a vocacionada a outra atividade.
Aplicando este pensamento ao caso da vovó do artigo anterior (“A conduta vocacionada caracteriza-se por um “algo mais”), verifica-se imediatamente sua eficiência e autoridade. Considerando que ela não estudou em escola nenhuma, mas aprendeu como que “espontaneamente” a arte do cozimento e enfeite da comida, é de admirar a eficiência que exibe, pois realiza com felicidade o objetivo pretendido: bem alimentar seus parentes e convidados ao mesmo tempo que lhes deleita sentidos não absolutamente necessários para a restauração do vigor físico, finalidade da comida. Quanto à questão da autoridade, basta dizer que na cozinha ela é a rainha, de tal modo que não se supõe que algum dos parentese presentes ponha em dúvida este seu senhorio nos assuntos relativos à cozinha e à mesa. Por certo que sua opinião sobre comida em geral tem mais peso do que a da maioria das pessoas.
A importância de se observar o destaque dessas duas características da vocação, a eficiência no fazer e a autoridade no ser é que a partir disso se pode escolher a melhor maneira de educar as crianças. Educar as crianças, ensinando-as a bem fazerem aquilo a que seus corações as inclinam naturalmente é preparar o terreno para que se tornem eficientes no que fizerem e adquiram autoridade sobre o próprio corpo e suas inclinações indesejáveis, uma vez que o corpo e seus desejos se tornam dominantes quando o indivíduo se desliga da objetividade do que lhe é externo. Além disso, uma educação deste tipo costuma ser excelente antídoto contra a inveja, que se caracteriza pelo sentimento de tristeza que invade o coração do invejoso ao perceber algum bem no outro. Tal educação enfraquece a possibilidade da inveja e faz brotar o sentido da admiração, que pode ser resumida na equação “sinto que sou tão eficiente, competente, etc., no domínio das coisas que amo e faço como Fulano o é no domínio das coisas que ama e faz”. O coração incapaz de admirar algo que seja bom, belo e justo, transforma-se em terreno onde viceja a inveja.
Refletindo sobre as citadas características da vocação, lembrei-me de palestra onde o palestrante expunha seu entendimento a respeito de um aspecto do pensamento de Santo Tomás de Aquino relativo à pena do inferno. “Os que vão para o inferno”, explicou, “segundo Santo Tomás de Aquino, padecem sofrimentos devido à prática de crime de “lesa majestade”. Crime de “lesa majestade” é o crime de reter para si o que pertence à comunidade. Ora, cada ser humano é tão único que há algo nele que não se repete, que é representado, no Apocalipse, pela ‘pedrinha’ que Deus dá a cada um com seu nome nela inscrito. Esta singularidade de cada pessoa é um bem único tão admirável que logo enche nosso coração de admiração – admiração pela inesgotável fartura de bondade que Deus aplica na criação de cada ser humano. Quem vá para o inferno priva os demais da contemplação deste bem; portanto, priva da admiração por Deus, o que significa afastar um pouco o próximo de Deus. E nisto se caracteriza o crime de lesa majestade. “
É razoável admitir que o cuidado na educação das crianças se efetiva quando se leva em conta a vocação de cada uma. O resultado deste cuidado é o surgimento de pessoas aptas a admirar-se com aquelas coisas que, na vida, funcionam como vestígios e imagem de Deus nas coisas do dia-a-dia.
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