Como “filhas inteligentes”, vamos até a gruta de Macpela, a propriedade que Abraão comprou de Efron, o hitita, por 400 siclos de prata, para nela enterrar Sara, sua mulher. Também estão aí enterradas Rebeca e Lia, não, porém Raquel, que morreu perto de Éfrata, hoje Belém, e jaz sob uma estela que assinala o lugar de sua sepultura (Gn 35,19). Estamos sentadas à sombra dos carvalhos que rodeiam a gruta e nos dispomos a abrir juntas o legado deixado por aquelas mulheres que edificaram a casa de Israel.
Damos-lhes a palavra:
A Herança de Sara
Alegra-me estar com vocês neste lugar carregado de recordações e imagina que a primeira coisa que esperam herdar de mim é o riso, que com certeza lhes deixo, embora queira também explicar-lhes suas vantagens e seus limites. Quando com curiosidade cheguei à entrada de minha tenda em Mambré e escutei que ia ter um filho, me pus a rir (Gn 18,12). Preferi rir-me a lamentar-me, e meu riso procedia de uma lucidez desperta e consciente. Quando vejo vocês, mulheres do terceiro milênio penso que não lhes faria mal herdar algo da lucidez do meu riso. Vocês são a primeira geração de uma civilização globalizada, mas dividida entre os que comem e os que são comidos, e essa realidade injusta exige ser assumida como fator primordial da verdade. Por isso, o primeiro desafio que têm pela frente é o de tirar a venda dos olhos e ter a “audácia de saber”.
Para ser sincera, devo dizer que não me admiro que o desânimo e o ceticismo se apoderem, ás vezes, de vocês. Ainda mais quando, no meio desse contexto generalizado de injustiça, a realidade eclesial não contribui muito para levantar-lhes o ânimo.
Houve um tempo em que eu vivia refugiada na convicção de que ante a minha esterilidade “nada havia a fazer”. Mas o Santo, bendito seja me visitou, e sua pergunta questionou minha amarga impotência e resignação ante o inevitável: Porque se ri Sara? Acaso existe algo impossível para Deus? (Gn 18, 13-14).
Foi essa a pergunta inquietante que atravessou minha alma naquela tarde calorenta, no carvalhal de Mambré. Tive medo, não por me sentir ameaçada, mas porque sabia que aquelas palavras me empurravam para fora da minha incredulidade e do meu desânimo, me tiravam do horizonte estreito de meus próprios limites e me convidavam a adentrar-me numa terra para mim desconhecida: a de uma fé e esperança às quais não estava acostumada.
“Sai de tua terra, de teu ceticismo e de teu desânimo, Sara, olha para além das constatações de tua lucidez, lembra-te de que onde terminam tuas possibilidades, começam as de Deus”, senti estas palavras dirigidas a mim.
Por isso, deixo-lhes como herança o premente apelo para considerar o que significa para vocês, hoje, essa afirmação de que “não há nada impossível para Deus”. Não será uma convocação para viver uma esperança absoluta?
Garcia Roca chama esses lugares “as experiências humanas de morte em meio à vida, de abandono em meio à abundância, de solidão em meio à comunicação, de pobreza em meio à prosperidade, de penas em meio à boa sorte. Essas situações limites que irrompem no cotidiano são as que quebram as inércias, despertam tudo o que está adormecido e geram discursos e práticas cheias de esperança. O tecido da esperança se constrói com materiais elaborados a partir do sofrimento das vítimas e tem um alcance universal, uma vez que, se elas puderam e souberam esperar, todos podem fazê-lo, se a esperança nos foi dada para tentar caminhar, é aos caminhantes e não aos instalados que se deve dirigir o olhar para perguntar como esperam e como desesperam, em quem confiam e a quem temem”
Pensando assim de Deus, reconhecia que, finalmente, havia sido ele quem havia rido por último, e com isso, estava colocando, sem o saber, os fundamentos para uma teologia da esperança.
Porque Ele não começou a salvar, a curar, a transfigurar o mundo nos sintomas da superfície, mas nas raízes mais internas; nós, gente da superfície, pensamos que nada aconteceu. Porque ainda continuam correndo as águas do sofrimento e da culpa, imaginamos que ainda não foi vencido o manancial do qual brotam. O Ressuscitado está no empenho anônimo de todas as criaturas que, sem o saber, se esforçam por participar na glorificação de seu corpo.
Se, no terceiro milênio, pretenderem ser mulheres com o Espírito, vocês terão de transitar por esse tipo de esperança cativa e ao mesmo tempo ativa.
Desejo-lhes de todo coração que sejam mulheres arrastadas no torvelinho da dança de Deus.
Madre Rosa Maria de Lima, F.M.D.J
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